A Morte Branca - Parte II

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Mesmo com grossas luvas de couro e lã seus dedos quase congelaram durante a subida. Talis, Grisha, Oskar e Tarak escalaram a margem direita do rio congelado, um penhasco rochoso de dez metros coberto por gelo afiado, tendo apenas um par de cordas com ganchos para ajudar. Seus companheiros mercenários continuaram sua marcha pelo fundo da ravina, duas fileiras de dez guerreiros mais ou menos ordenadas lideradas por Brunhild e Goddrum. A maioria carregava as armas típicas anãs: martelos para esmagar cabeças, machados para romper tendões e escudos para aguentar pancadas. Suas cotas de malha e placas de aço tilintavam ao caminhar, tornando-os fáceis de localizar mesmo quando a névoa espessa encobria suas cabeças. Um terço deles, porém, assemelhava-se mais a porcos-espinho do que a soldados. Aqueles anões em suas armaduras pretas, cobertas da cabeça aos pés por pontas metálicas, eram os kuldjargh — os "idiotas do machado". Cada um carregava um enorme ugrosh, um machado de cabo longo cuja ponta debaixo era afiada como uma lança. O conjunto da armadura de espinhos e arma exótica os tornava guerreiros únicos, tão particulares à cultura anã quanto crescer barba, e os fazia a linha de frente dos Machados Sangrentos.

Oskar e Tarak eram kuldjargh, e ambos orgulhavam-se do estilo de luta quase suicida. Oskar, a barriga proeminente coberta por cravos da grossura de polegares, tinha o lado direito do rosto marcado por cicatrizes de garras e falava com frequência sobre acrescentar algumas marcas ao outro. Tarak, mais novo e mais atlético, tinha adereços cortantes trançados no cabelo e barba. Grisha, assim como eles, era uma bárbara dada à fúria de batalha, porém não compartilhava o estilo de luta anão. Seu machado era uma típica lâmina dupla orc, marcada por mossas de impacto e com um cabo feito de osso, e sua armadura eram somente os pelos grossos de um urso das cavernas que cobriam seus ombros e costas. Talis a vira diversas vezes entrar, ou melhor, sucumbir à fúria, e podia dizer com certeza que era algo que kuldjargh nenhum poderia aprender. Ninguém mais tinha dentro de si um frenesi esperando para tomar o controle.

Os quatro percorreram o topo da ravina por três horas, acompanhando a tropa abaixo e buscando por sinais do dragão. Com exceção das nuvens carregadas, o céu estava vazio. Parecia que nenhuma ave de rapina arriscaria caçar no território daquela fera, e nenhuma outra ave poria sua vida em risco. Nas rochas e troncos dos pinheiros que os ladeavam, ocasionais marcas de garra deixavam claro o tamanho de seu inimigo: fendas compridas como espadas, profundas como golpes de picaretas e, por vezes, acompanhadas de sangue escuro e congelado.

Foi Talis quem primeiro notou que não estavam sozinhos. Os anões pararam para mijar no tronco de um velho abeto desfolhado e ela e Grisha decidiram explorar a mata por alguns passos. Enquanto a urina de cheiro pungente fazia vapor ao tocar a neve e os dois idiotas de machado riam, a meio-elfa agachou-se diante de um conjunto de pegadas.

— Pássaros? — Grisha perguntou ao vê-las. Eram marcas de quatro dedos e uma garra no calcanhar, aprofundadas na neve.

Talis fez que não, suspirando e soltando pela boca uma pequena nuvem.

— Algum tipo de dragão. Aves teriam três dedos, outros lagartos não teriam essa garra atrás. De qualquer forma, é um réptil adaptado a andar no gelo.

— O que que tem aí? — quis saber Oskar, erguendo as calças enquanto se aproximava.

— Companhia. — respondeu Grisha, adiantando-se e olhando por entre as árvores. — Um filhote de dragão, talvez?

— Talvez. — Talis concordou, porém estava incerta. — Vamos avisar Brunhild?

Oskar passou por Talis arrastando o ugrosh atrás de si, por pouco não esbarrando nela com seus cravos afiados.

— Bah! Vamo vê o que que é isso de uma vez por todas. Quero derramá sangue ainda hoje.

Antes que Oskar pudesse dar dez passos a neve diante dele irrompeu para cima, e uma criatura maior que o anão saltou sobre ele.

— Oskar! — Grisha gritou e disparou à frente. O anão estava no chão, encimado por uma criatura de aspecto dracônico, toda coberta por escamas branco-acinzentadas que conferiam a camuflagem perfeita no ambiente invernal. Ambos engalfinhados em uma luta corpo-a-corpo intensa, logo as primeiras manchas vermelhas começaram a surgir por entre as escamas alvas.

A criatura saiu de cima de Oskar e recuou, ferida embaixo do pescoço e na boca ao tentar mordê-lo em sua armadura de espinhos. Oskar esfregou a mão na cara, sujando-a com sangue quente, e partiu para o ataque.

Apesar das pernas curtas o anão foi mais rápido que Grisha, Talis ou Tarak, alcançando o inimigo em um piscar de olhos. Seu machado desceu direto contra ele, a criatura esquivou-se e desferiu uma chicotada com a cauda, abrindo um talho nas costas de sua mão. Oskar reagiu virando a ponta de lança contra a criatura, engajando em um combate cada vez mais intenso, afastando-se de seus companheiros até cair na armadilha.

À esquerda e direita a neve explodiu com mais criaturas dracônicas.

— Mais dragonetes! Grisha, cuidado! — Talis deu um grito de alerta, sacando sua espada para juntar-se aos companheiros.

Ao mesmo tempo em que os três dragonetes saltaram sobre Oskar, Grisha caiu sobre eles.

O urro da meio-orc chamou a atenção da fera à esquerda de Oskar. Ela ergueu sua crista e sibilou, mostrando as presas, mas o golpe do machado de cima para baixo o jogou contra a neve, fazendo-o rolar duas vezes até atingir um tronco e parar. A meio-orc urrou novamente, plantando os pés entre o dragonete ferido e o mercenário anão. Os dois se encararam, fúria e selvageria. Tarak finalmente alcançou o inimigo à direita de Oskar e deu um encontrão com sua ombreira coberta por chifres afiados. O dragonete cambaleou, meia dúzia de escamas esmagadas em seu flanco esquerdo, mas devolveu um golpe com a cauda que pegou Tarak por trás dos joelhos e o levou ao chão.

Talis correu até o anão derrubado enquanto o dragonete o atacou com as garras, tomando cuidado para não ferir a si mesmo na armadura de espinhos. A fera percebeu a aproximação da meio-elfa e conseguiu se esquivar do primeiro golpe de espada. Era, contudo, uma distração, e Oskar espetou seu lado direito com a parte de trás do ugrosh. O dragonete à direita ganiu e recuou. Grisha atacou mais duas vezes aquele que derrubara, não dando chance para que se levantasse, e Oskar afastou o primeiro dragonete até que toda sua frente ficasse coberta de sangue, seu próprio e também do anão. Com um companheiro ferido e o outro que se afastava, o que restava recolheu o corpo como uma serpente, trocando a atenção entre todos seus inimigos. Enquanto isso, Talis apenas o encarou.

Grisha, Oskar e Tarak mantiveram-no afastado enquanto Talis se concentrava. Sabiam de seus poderes e esperaram os poucos segundos que ela levava para conjurar o feitiço. O dragonete parecia pesar os riscos de ficar ou fugir, porém, assim que tomou a decisão e deu o primeiro passo, Talis estocou com a espada. O dragonete desviou para a esquerda, erguendo-se nas patas traseiras e afastando a cabeça, mas a arma de Talis seguiu seu pescoço, exposto com o movimento, prevendo aonde estaria. A espada longa entrou alguns centímetros, o suficiente para manchar toda a neve à frente de sangue. Assim que aquele caiu, o terceiro dragonete decidiu fugir de vez.

Grisha pegou uma machadinha pendurada em seu cinto e a arremessou no ar. A lâmina rodou e descreveu um arco lateral, acertando o dragonete em uma das patas traseiras. Ele escorregou na neve e deslizou, mas levantou-se e, cambaleando, continuou a trotar para longe.

— Deixe ele ir. — disse Talis antes que os outros embrenhassem-se ainda mais na mata. — Podemos seguir o rastro de sangue, mas vamos antes avisar Brunhild.

Oskar e Tarak bufaram em resposta, limpando o suor do rosto, a fúria dissipando aos poucos. Grisha assentiu, mais controlada do que os camaradas, ainda encarando a floresta.

Voltaram juntos até a ravina, armas em mãos e os sentidos aguçados. A tropa havia parado de se mover e todos olhavam para cima, alertados pelo som da luta. Talis ajoelhou-se na beirada e gritou para baixo para ser ouvida acima do ruído do vento.

— Está tudo bem! Encontramos três dragonetes, mas demos uma surra neles. Permissão para ir atrás do que escapou?

Brunhild não pensou duas vezes.

— Permissão negada. Fiquem por perto e alertas, logo vai escurecer e temos que montar acampamento.

Talis assentiu e levantou, voltando para os companheiros.

— Queria mais sangue. — reclamou Oskar, cuspindo no chão. Estava ferido, mas os machucados não pareciam incomodá-lo.

A Morte Branca [D&D] [Completo]Where stories live. Discover now