1. Cataclismo

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Seu nome é Shouto Todoroki e você está fugindo de criaturas que se escondem na escuridão e se alimentam de medo e de agonia. E nesses dias, elas podem ser qualquer conhecido, ou algum amigo próximo, um ente querido. Só que agora elas são restos do que um dia foram. E o seu coração salta uma batida, depois falha, esmagado de forma dolorosa dentro de seu peito, seja por ansiedade ou puro desamparo.

Reencontrá-los sempre dói, principalmente quando precisa escolher. Você ou eles. Esse é o jogo. E o perigo está sempre à espreita, bem ali, oculto nas sombras, sem nunca revelar-se, até que seja tarde demais.

Você que nunca foi religioso, hoje se vê murmurando para si alguma oração, qualquer encantamento que possa protegê-lo do destino, mesmo sabendo que é inútil e que nada vai acontecer se não lutar. De qualquer forma, é um hábito que adquiriu para confortar-se, quando viu-se sozinho, tal como conversar consigo e fingir que alguém está ouvindo. O conceito de uma oração parece o mesmo. Deus existe tanto quanto as vozes na cabeça de um lunático.

Logo você, que era um cético, assim como o seu pai, que era um cético como o pai dele. Você vem de uma longa linhagem, afinal. Não era isso que ele dizia o tempo todo? O velho idiota sempre foi arrogante, censurava sua mãe por curvar-se e por ajoelhar-se com as mãos voltadas aos céus, sempre orando para que a vida fosse diferente. Sempre conversando com vozes que sussurravam de volta, a única companhia para ela. Não é a toa que tenha ficado louca. E você também sente que a qualquer momento vai perder a cabeça nesse lugar. Ironicamente, sentia isso também até mesmo antes de tudo, quando ainda estava em casa.

Enji causava isso nas pessoas.

Mas agora não mais.

Você sempre pensou na ironia disso tudo, quando entendeu que foi a mesma crença que impediu Rei de partir. Uma devota, de corpo e alma, até seu último suspiro. O casamento era uma instituição sagrada e ela, que temia o inferno como uma boa cristã, jamais ousaria contrariar a vontade de Deus. Até suas últimas palavras foram sobre um Deus que prometia salvação – o mesmo Deus sádico que trouxe toda essa aflição? Você questiona e questiona, sempre foi assim. Agora você apenas não apanha mais por simplesmente discordar. Há coisas piores para se preocupar, como sobreviver mais um dia aqui.

Em seus piores dias, sua mãe dizia que você era o filho do diabo, enquanto orava pela sua alma, como se pudesse exorcizá-lo. Você nunca entendeu a razão de tanto ódio dentro de um coração que se dizia tão cristão e devoto, mas sempre sentiu uma vergonha inexplicável, como se sua existência fosse uma ofensa à ordem divina. Ironicamente, talvez você tenha sido o único deles a sobreviver.

Ela tinha certeza que você que também desenvolveria uma daquelas habilidades especiais. Abominações, segundo ela. Individualidades, eles chamavam nos noticiários. Tentavam ao máximo esconder o desprezo e o medo, porque discriminação sempre foi um assunto delicado, tratado em sussurros e olhares de canto, mas eles estavam sempre ali. Não era comum naqueles dias, afinal, estava mais para um tipo de anomalia que acontecia em uma a cada sabe-se lá quantas crianças, em lugares afastados, longe o bastante para suspeitar que tudo isso se tratasse apenas de uma teoria conspiratória.

De todo modo, sua mãe sempre pareceu muito certa da maldição que você carregava. Ela queria te amar, mas a ideia de cuidar de uma criança como você parecia inconcebível. Seu pai apostava nisso também, mas diferente do medo de Rei, para Enji era como se a vida dele dependesse disso. E ele te punia como se fosse sua culpa, a cada decepção de um novo dia onde você aparentava ser apenas uma criança absolutamente normal.

Agora você sente como se ela sempre tivesse estado certa. E a sua estranha habilidade de controlar fogo com uma das mãos seria prova o suficiente de que, talvez, você seja, de fato, o filho do diabo. Ela temia o que você poderia se tornar, ainda que só na teoria, por isso a pobre mulher rezava e rezava, até os joelhos sangrarem diante do altar de casa.

É claro que nenhum Deus os salvou da doença que se alastrou por todo o continente, devorando toda a beleza do mundo e o rendendo a cinzas. Você sobreviveu, por algum motivo e também não foi o único. Agora sabe que existem outros espalhados pelo mundo, ou ao menos era o que diziam nos noticiários, antes de toda, ou quase toda, comunicação ser cortada no país.

Aqueles que não viraram monstros, agora são aberrações de outro tipo. E talvez seja uma boa coisa que sua mãe não tenha sobrevivido para presenciar isso tudo. Se ela já era insana antes, agora com certeza teria explodido os próprios miolos a ter que viver em meio a tanta profanação.

Quem sabe sua mãe teria chamado de milagre o fato de você estar vivo ainda, embora sua alma suja sequer mereça qualquer tipo de redenção. Você nem tem certeza se deveria contar isso como uma bênção, ainda mais em um lugar como este. Dia sim e dia não se pega pensando na sorte daqueles que já foram, aqueles que não precisam derramar ainda mais sangue para comprar apenas mais uma noite ou duas para si.

Você já pensou em desistir tantas vezes, render-se. Sombriamente, tem dias em que espera simplesmente ser pego, para acabar logo com isso de forma simples, mas parece covarde fazê-lo depois de tudo que já teve que fazer para continuar seguindo.

Provavelmente nem existe uma explicação plausível para nada disso. Você só sabe que cada dia pode ser o último, principalmente quando olha por cima dos ombros e pode sentir a presença da morte, com sua canção de ninar macabra zunindo em seus ouvidos, como se marcasse as suas horas numa contagem regressiva.

Skyfall - bnha | todoshinOnde histórias criam vida. Descubra agora