2. Sacrifício

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Sobreviver te custou caro.

Como cada dia de vida que você compra para si em meio à violência, suor e sangue, te custam. Cada dia parece que um pouco mais de sanidade e da sua própria humanidade se vão. Esse jogo já te custou seus irmãos, as pessoas mais próximas de você. Te custou algumas pessoas que encontrou pelo caminho e achou que, finalmente, não estaria mais sozinho, até que elas eventualmente foram pegas também.

Foi assim com Deku. O garoto que dizia que foi sorte vocês terem se encontrado, que só poderia ter sido. Só alguém como ele poderia dizer essas coisas em uma situação como esta. E embora você não acredite nem por um segundo em acasos, quando estava a um passo de perder a cabeça, era tudo que podia fazer. Era isso ou render-se à sua própria sorte e deixar que tudo acabasse ali.

Ele queria tanto te ajudar, te ofereceu não só uma mão, mas se doou de corpo inteiro. Outro devoto, de corpo e alma. E você que se perguntava, dia após dia, qual era o propósito em continuar vivendo, ao olhar nos olhos dele, entendia. Sentia como se o mundo pudesse acabar em chamas, desde que os dois estivessem juntos.

Deku, que nunca lhe disse seu verdadeiro nome – apenas Deku, foi o que ele concedeu – conquistou sua confiança imediatamente, talvez fosse essa a sua habilidade especial. Pode me chamar de Shouto, você respondeu, feliz em abandonar seu sobrenome sem ser questionado. E você acreditou que naqueles olhos verdes assustados, mas tão sinceros e no sorriso trêmulo que nunca deixava seus lábios estava a sua própria redenção.

Você nunca soube o motivo dele carregar tanta dor naquele olhar também, apesar do sorriso, mas nunca o pressionou por respostas. Às vezes ele gemia dolorosamente em seu sono, sempre acompanhado do mesmo nome – Kacchan. Talvez você devesse tê-lo pressionado um pouco mais, quem sabe as coisas teriam sido diferentes, então. Quem sabe assim, você saberia um pouco mais, entenderia melhor e poderia ter evitado o sacrifício que ele fez, quando entendesse que ele tinha tudo isso planejado.

Deku chamou o que você fez de misericórdia. É claro que ele pensaria isso. E você jamais esperaria que a pessoa que te tirava para dançar, sem música, num esconderijo no meio de escombros, que o garoto que te beijava inesperadamente, casto e cheio de emoção, tão cheio de vida, dizendo que foi um milagre vocês terem se encontrado, quisesse tanto morrer.

Você só entendeu depois que já era tarde o que o desamparo naqueles olhos significava. É claro que ele jamais veria crueldade alguma em você, nas suas ações, ainda mais quando foi ele quem implorou, com a voz fraca e uma tosse úmida, para que acabasse com aquela agonia, quando a doença já havia o tomado quase por completo. Você nunca achou que ele tivesse feito o que fez de propósito.

No esconderijo que encontraram para se abrigar, não havia suplementos para cuidar das suas feridas e das dele, não havia possibilidade de recuperá-lo completamente, você soube que estava perdido no momento em que ele tomou aquela mordida por você. Não haveria outra maneira, em poucos dias, ele não seria mais alguém. Não teria mais vontades próprias, seria uma marionete, um dos monstros que vagam na escuridão.

Mesmo que quisesse enganar-se, os indícios estavam todos ali. A ferida na testa, que a cada dia parecia maior e que logo, logo iria romper o crânio no meio e expor os miolos, assim como todos os outros que vocês haviam derrotado juntos, todos tinham a mesma aparência. Você viu uma dessas em sua irmã, também. Todos eles um dia foram pessoas que caminhavam pelas ruas, gente que talvez frequentasse as mesmas escolas que vocês, pessoas que nunca trocaram um segundo olhar, mas agora eram inimigos marcados. Você ou eles.

Você considerou até mesmo deixá-lo ir. Mas mesmo se o fizesse, não seria assim tão simples para nenhum dos dois. Provavelmente tornariam a se encontrar, então era melhor acabar com isso de uma vez. Seu amigo, assim como a sua mãe, acreditava em algo. E ele te disse isso em um sussurro, afirmou que tinha que ser você e que iria ficar tudo bem, ele dizia enquanto pressionava a faca de bolso que carregava consigo nas suas mãos, com dedos fracos e gelados. Suplicando, com lágrimas nos cantos dos olhos e seu nome nos lábios, como uma última oração – Shouto, Shouto, Shouto, por favor – como se você fosse o único capaz de salvá-lo.

Você se lembra todos os dias do sorriso em lábios rachados, pintados de vermelho, colados aos seus, sem a doçura de outros dias, quando vocês se perdiam nos braços um do outro, sem saber se viveriam para ver mais um dia. A imagem nunca deixou sua mente, nem quando você dorme, especialmente quando dorme.

Um pedaço da sua humanidade certamente morreu com ele naquela noite, ainda que Deku tenha chamado seu ato de misericórdia. Você sentiu raiva, nojo, tristeza e desamparo. Teve raiva, porque não podia fazer nada, se não seguir com o plano dele, em meio a sua visão turva, em seu único olho bom e a dor em seu coração nunca desapareceu.

Você decidiu depois disso que seguiria sozinho. Não poderia novamente sucumbir à sua própria ingenuidade e não queria passar por isso tudo mais uma vez. Permaneceria fugindo, até o fim de seus dias. Mas até quando poderia continuar fazendo isso? Deve haver um limite. No fundo, você espera que esteja próximo dele, honestamente. Está cansado de lutar, cansado de acumular sangue em suas mãos, em suas roupas, em todo o seu corpo. Nem o cheiro que antes te fazia querer vomitar te incomoda mais, por esses dias.

Skyfall - bnha | todoshinWhere stories live. Discover now