Desencanto

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Tirou os delicados sapatos revestidos de cetim, e subiu na velha porteira.

Dezessete anos haviam se passado desde a última vez que fizera isso. Mas o gosto agora era diferente. O doce sabor da vingança. A fazenda que morara quando criança finalmente era sua.

Elena agora vencera o passado. O amor que tanto tempo lhe atormentara o coração agora em ódio se transformara, ela triunfava perante o homem que tanto a fizera sofrer.

Como uma grande ironia do destino, ele perdera toda a herança que seu pai lhe havia deixado, e ficara sem ter outra alternativa, a não ser vender as propriedades.

Elena comprou.

Não que precisasse, pois o espolio que João Pedro deixara para ela, lhe permitiria viver com muito conforto pelo resto de seus dias, mas o prazer de ver aquele homem lhe servir, era o sabor de um bom vinho, que deveria ser degustado aos poucos.

Ela não se preocupara em tirá-lo das terras. Apenas por meio de seu advogado, mandara que ele não morasse na Santa Inês. Ele poderia morar na fazenda vizinha, e cuidar da Santa Inês, seria seu empregado.

Já era passado dois meses desde que comprara as terras. Não havia ido até as fazendas, pois não queria ser identificada como proprietária.

Tudo que mandava ou precisava, fazia por meio do advogado. As terras ficaram no nome das filhas, que como sabia, Aurélio nem desconfiava que existiam.

Elena não voltara mais a São João de Irepês desde que saíra de lá, com dezesseis anos, carregando Julia no ventre. Casou-se com João Pedro Mueller, e adotou o sobrenome do esposo, que assumiu a criança como sua filha.

Ela nunca perdoaria Aurélio.

A porteira foi abrindo suavemente, levando consigo Elena, embalada por seus pensamentos. Era a mesma sensação de quando era adolescente.

Podia sentir a brisa de início de verão nos cabelos longos que um dia tivera, e estes roçar-lhe a pele muito alva.

Sorriu sozinha, lembrando dos vestidos leves que usava na estação, e dos olhares que cativava ao passar.

Não podia no entanto, esquecer "aquele olhar". Ele também a olhava. Com a diferença que naqueles olhos verdes, havia uma profunda chama que ela não sabia de onde vinha. Uma chama que prendia os olhos dela.

Lembrou-se então da primeira vez que o vira. Podia sentir o cheiro da poeira da estrada, e ouvir o barulho dos cascos batendo no chão poeirento. Podia ouvir os gritos dele com o cavalo bravio que teimava em desobedecer. Podia até sentir seu cheiro.

-Mããããeeeee... - era a voz de Ana, sua filha mais nova, agora com quinze anos, a mesma idade que ela mesma tinha quando conhecera Aurélio.

-Elena? - aquela voz ela conhecia, havia muito que não ouvia.

Dezessete anos.

Elena saltou da porteira e correu para a estrada descalça. O que viu foi uma cena de cinema.

Ana corria pela estrada, sendo alcançada por dois cavaleiros. Um jovem de roupas claras e olhar fulminante, num grande alazão, e um homem com um grande chapéu negro que lhe cobria a face.

Sem reação, Elena viu Ana pisar em falso numa pedra e cair, quase em frente ao cavalo do homem de chapéu. Viu também, em câmera lenta, o jovem saltar do seu cavalo, e proteger sua filha com o próprio corpo.

-Anaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa... -o grito rouco escapou de sua garganta e seu primeiro impulso foi correr até a filha que assustada chorava.

Quando se aproximou, a filha tremia, amparada por aquele jovem desconhecido que a abraçava, tentando mantê-la no chão.

-Calma moça, 'tá tudo bem. Você se machucou? - Ana soluçava.

-Com licença! - Elena puxou a filha dos braços do jovem e a envolveu com os seus. - Filha, que aconteceu? Não chore minha criança, mamãe está aqui...

- Desculpe, senhora... Pensei que ela fosse outra pessoa, e acho que ela se assustou com os cavalos... - os olhos de Elena e do homem de chapéu finalmente se cruzaram.

Aqueles olhos! - C-como? - Aurélio não conseguia entender!!!

Elena levantou-se da estrada, que deixara suas roupas e as de Ana simplesmente imundas.

-Vamos querida, vamos para casa.- Elena foi levando Ana pela mão, enquanto deixava atônitos os dois cavaleiros. O rapaz no chão, não conseguia tirar os olhos de Ana, Aurélio não conseguia desviar os olhos de Elena.

Fez Ana sentar-se no carro. E como lhe ocorrera que nem ao menos agradecera o jovem que salvara sua filha das patas dos cavalos, Elena fechou a porta do carro e voltou-se em direção das duas figuras na estrada que não haviam nem ao menos se movido.

-Qual seu nome, meu jovem? - perguntou Elena se aproximando do jovem que ainda estava sentado no chão, os braços ainda aninhados no colo, agora vazio.

-Miguel - respondeu Aurélio, já que o jovem não disse palavra.

-Então Miguel, gostaria de compensar-lhe pelo que fez, ainda que a vida de minha filha tenha valor incalculável. - dirigiu-se Elena ao jovem tirando de sua carteira um volumoso maço de notas, ignorando Aurélio que agora descia de sua montaria.

Miguel olhara agora horrorizado para o dinheiro que lhe era estendido.

- Não quero nada disso! Basta-me saber se ela esta bem. - Miguel se fixara no carro, e tentava imaginar se a jovem também o observava, mas ele nem ao menos viu sua face se mover em sua direção. Estaria ela chorando?

- Sua filha é muito bonita, Elena -Aurélio começou.

- Sim. - cortou secamente Elena, mordendo o lábio inferior com raiva.

- Parece-se com...

- No passado. Tudo ficou no passado. - cortou Elena, deixando claro que não gostaria de falar do assunto.

Miguel já se punha de pé, ignorando a mão da mulher que lhe estendia verdadeira fortuna. Pouco se importava com dinheiro.

-Posso, por favor ver como ela esta, por um momento? - implorou Miguel, sabendo que seu coração jamais teria paz se não a visse apenas mais uma vez, e não teria mais tranqüilidade se a visse novamente.

Elena pressentindo a reviravolta do destino, pensou em não autorizar, mas os olhos daquele jovem mostravam tanta esperança, e tinham um brilho tão especial, que apenas consentiu com a cabeça, e pediu que fosse breve, ela deveria voltar para casa.

-Quem é ele? - indagou a contragosto Elena a Aurélio, que largara o cavalo e caminhava, dois passos de distancia dela.

-Meu filho - revelou Aurélio, mesmo sabendo que poderia arruinar a impressão que Elena havia tido do rapaz - você se casou?

- Sim. Ana é minha filha. - repetiu a informação a Aurélio, como se fosse obvio que tendo uma filha, deveria ser casada.

Miguel se aproximara do carro, e não resistindo a tentação, apanhou uma mecha dos longos cabelos de Ana que o vento esparramara sobre a janela. Sua reação não podia ser pior. Ana se encolhera no banco, sem nem ao menos olhar para ele.

-Mãe...- chamara Ana assustada pela presença que não sabia distinguir.

Elena correu para o carro e afastou o jovem da porta.

- Juro senhora, que nada fiz. Ela deve estar assustada ainda... - tentou se explicar o rapaz, ainda confuso com a reação. Era um belo jovem, nenhuma moça havia até hoje se comportado de tal forma a ignorá-lo, ou teme-lo.

- Ela não pode vê-lo - reprimiu Elena, e como presumisse o espanto do rapaz, acrescentou - ela é cega.

Nada está em seu lugarWhere stories live. Discover now