Doce espera

18 4 7
                                    

Os últimos alunos foram pouco a pouco se despedindo e saindo, deixando o estúdio silencioso e quente.

Mr. Donavhan foi o último a sair.

-Quer que eu apague as luzes, Grace?

-Não, obrigada. Pode ir descansar. Boa noite.

O velho pianista resmungou um boa noite e saiu assoviando.

Grace tirou os sapatos de dança e sentiu o chão do estúdio com o pé nu. O calor acolhedor da madeira lisa e uniforme que deslizava sob sua pele a convidava para uma última dança.

Parou em pliê em frente ao imenso espelho que cobria as quatro paredes do estúdio. Em um canto, coberto pela penumbra causada pelas luzes que Donavhan havia apagado, o piano descansava, silencioso e solitário. Sobre ele, duas máscaras.

Grace deu alguns passos e parou em frente ao piano.

Tocou com delicadeza suas teclas alvas. O som agradou aos ouvidos da bailarina.

A máscara prata lhe chamou a atenção, e a jovem a tocou.

Milhões de pensamentos passaram pela sua mente.

Caminhou então até o centro da sala vazia e colocou a máscara.

Num instante estava no palco.

Ignorou seu casaco em um canto, ficando apenas com o leve vestido com que dava aulas. O vento forte lá fora uivava batendo nas janelas fechadas, mas ali dentro o aquecedor a protegia do frio.

Não procurou as sapatilhas, nem se importou com os cabelos que lhe caiam sobre os ombros formando um manto cor de tabaco que se desenrolava em leves ondas até tocar-lhe os quadris.

Fez primeiro movimento e o público silenciou, extasiado.

A música secreta do seu coração invadiu a sua alma e ela dançou como jamais havia feito em toda a sua vida.

Um rodopio, um salto delicado e firme e um pouso leve de borboleta ao chão. Grace flutuava.

A música tinha um ritmo desconcertante, como o som do seu coração.

O brilho da mascara prateada acompanhava os passos vigorosos que agora se tornavam rítmicos, no auge da canção que soava.

A pouca luz que iluminava o estúdio, voltada para a solitária dançarina, trazia um ar aconchegante, um cheiro de mel que derrete nos lábios, misturado às flores de jasmim que descansavam na essência que Grace usava.

A música chegava ao fim, e as últimas notas pediam passos doces e lentos. Ela fechou os olhos.

O público a aplaudia de pé, e a última nota foi tocada.

Sentiu então um leve arrepio percorrer seu pescoço e descer pela sua coluna.

Abriu os olhos. Sua primeira reação foi choque, seguida de medo, espanto, e ela ficou completamente paralisada na posição em que estava.

Pelo espelho à sua frente, podia ver, às suas costas, uma máscara negra que cobria parcialmente um rosto.

Dois olhos verdes brilhavam atrás da máscara, e dois braços fortes a amparavam envolvendo-a pela cintura, bem a tempo, antes que ela caísse da posição em que estava.

Aroma misterioso de mel agora estava bem próximo, no corpo quente e forte que a envolvia contra o peito.

Os olhos de lince a observavam bem de perto como se pudesse ler seus pensamentos ou adivinhar o seu futuro.

O coração dela parara. O dele batia. Febrilmente. Como se quisesse escapar do peito, vil prisão que o encerrava.

Grace não podia falar.

Mas palavras não eram necessárias.

A máscara pouco permitia que ela o visse.

Apenas podia definir um maxilar com ângulos retos e firmes, pontilhado de negro, da barba feita a pouco, sobre a pele muito alva. Os cabelos que lhe tocavam a fronte, cor caramelo com leves reflexos de sol, e uns lábios que agora se abriam num leve sorriso e deixavam escapar o hálito doce e quente.

A razão ordenava que ela se afastasse daquele homem que a abraçava. O instinto sussurrava que ela ficasse onde estava.

Olhou profundamente naquele mar verde, como se fosse naufragar. Inebriada pelo perfume e pelo hálito envolvente dos lábios cada vez mais próximos dos seus, instintivamente fechou os olhos, e sentiu os lábios dele, macios e doces sobre os seus, enquanto sentia a mão vigorosa enlaçá-la e trazê-la para mais perto de si. O tecido fino do vestido não a protegia do calor daquele corpo febril.

A eternidade seria pouco tempo para descrever o tempo e a intensidade daquele beijo primeiro.

E no aconchego daquele abraço, ficaram os dois. Sem dizer uma única palavra. E sem retirar as máscaras.

O sino da catedral soou ao longe dez horas. Uma lágrima rolou por baixo da máscara negra e percorreu o rosto pálido, indo partir-se ao chão.

Grace levou a mão à máscara dele para retirá-la. Ele apenas segurou sua mão.

Num movimento suave, beijou os dedos da garota e delicadamente tirou sua mão.

Levou as mãos ao próprio pescoço e tirou uma corrente de prata, de onde pendia um pesado crucifixo.

Estendendo as mãos, abotoou-a em torno do pescoço de Grace.

Ela também retirou a medalha que usava, e fora de sua avó, e entregou-a a ele. Ele a beijou e guardou-a junto ao peito.

Eles nada disseram.

Ele a deixou onde estava e deu dois tristes passos em direção ao piano. Ela não se moveu. Inerte, apenas observou.

Ele parou em frente ao piano, pensativo. De súbito, voltou. Abraçou-a fortemente e beijou-a como se fosse perder sua alma se a soltasse.

E aquele beijo tinha sabor de saudade, de despedida.

O beijo que durou os minutos mais curtos da vida da professora.

Ele por fim a soltou e foi ao piano.

Fechou-o com carinho. E levando as mãos a nuca, desatou a fita que prendia a mascara e devolveu-a ao piano.

Pegou o violão, que só agora Grace percebia recostado ao piano, colocou-o no ombro, e na penumbra da sala, voltou-se ainda uma vez para Grace, que pôde ver vagamente um lindo rosto, meio encoberto pelos cabelos louros.

Deixou a bailarina ali. Olhou-a ainda da porta, duas lágrimas cintilavam uma dor escondida. Saiu, fechando a porta atrás de si.

E ela ficou ali parada.

Apenas esperando.Esperou por meses. Por anos. Esperaria até a vida toda. Ela sabia que ele a encontraria ali.

Então ela apenas esperava.

Nada está em seu lugarWhere stories live. Discover now