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Depois de testemunhar sozinho algo incrível e passar três dias e noites em claro, Wiliam percebeu-se bitolado e foi assim que começou o drama daquele que verteu em bênção a maldição e passou a acreditar que o mundo devia saber sobre o que sucedera. Resolveu, então, cumprir aquela missão para finalmente poder dormir em paz e, como antes de laborar elaborar é preciso, decidiu transformar aquele muro numa tela.

Começou a lixar, de modo que só se deu por satisfeito quando o muro alcançou o tornou-se tal como ele era no passado: liso e limpo, perfeito para uma nova e boa história. Era também estratégico pelo simples fato de estar numa curva côncava, o que obrigava quem por ali passasse a dar de cara com o muro, inevitavelmente, então quem se deu ao luxo de passar batido no dia anterior não teve como ter o mesmo comportamento na terça.

Impossível seguir em frente sem perceber as cores que já estavam apareciam, o azul meia-noite obrigava qualquer um a descer o olhar, hipnotizando-se ao perceber a notável gradação que nascia. Descobriu-se, então na quarta-feira que não, não era mar. O azul era céu, o amarelo era o chão, e a medida que o trabalho avançava a dor mostrava-se mais presente nas expressões do jovem artista. Do jeito que ia, morria e não terminava. Foi quando a vizinhança resolveu ajudar.

Wiliam sorria, sorria e era de dar dó, pois existia boca, sorriso não, há muito tempo. Aquele sorriso era macabro, uma tragédia ao ar livre, exposta até para os que não quisessem ver: como podia uma alma habitar num aquele corpo de exatas duas décadas de vida e já ser um notável morto-vivo? O jovem, apesar de tudo, provava que algo de bom ainda resistia. O talento que se comprovava aos olhos alheios manuseando o pincel com as mãos sobreviveram a todas as agressões. Exatamente por isso ele pintava com a certeza dos que antevêem. Assim das mãos mágicas nasceram os personagens do quadro. Das mãos ainda arrebentadas pela inesquecível surra que a pau e porrete lhe levou os dentes, e lhe trouxe, da clavícula ao mindinho do pé, fraturas terríveis.

Passado um mês da surra que roubou o direito do lado direito endireitar-se, Wiliam acordou do coma na cama e lamentou na hora, porque sabia que dali da UTI para o envelope de madeira bastava voltar no bairro. Pena ainda estar de pé, naquela tarde, o vaso que teimava não quebrar; esquelético, descalço e sabe-se lá há quantos dias sem banho, seguindo em sua missão de viver em eterno gerúndio e alienando-se de si e todo resto.

Desde que chegou – dezessete de abril – que só pensava em como seria, em como morreria. Como seria o fim. Voltou trazido pelo querido tio que, depois de não lhe dizer uma vírgula durante todo trajeto, ofereceu-se para levá-lo para dentro de casa, porque, apesar dos pesares, a gente é tudo família. Tudo bem, mas Wiliam preferia esperar solitário, sentado no banco do beco pelo ponto final de um sofrimento reticente.

Daí veio a cena que roubou o protagonismo acústico local: um bate-bate orquestrado de portas aqui, ali e lá, de repente tirou a paz do meio dia. Latidos e rosnados ferozes e assustadores, cada vez mais perto. Coração veio na boca. Latidos, mais latidos, cada vez mais perto, davam um desespero e a sensação de que o medo do ataque é pior do que o ataque em si. Seriam eles? Era a hora? O destino iria se cumprir? Instaurou-se o clima de desespero. Mas, a resignação tomou conta. Havia escolhido o caminho que escolheu. Era hora de arcar com as consequências do tropeço dado aos quatorze. Baixou a cabeça, aceitou.

Contudo, algo diferente aconteceu surpreendentemente rápido. Em menos de um segundo reuniram-se os elementos diante de seus olhos e operaram numa ação em sequência, o deu origem ao conjunto da obra. O primeiro ato: a Cadela, o rato, e o combate. Daí, ao segundo ato: o rato e a cadela polivalente agem em ataque e contra-ataque, respectivamente. E de repente, o desfecho: um golpe surpreendente a bastão, surge um guerreiro de arma na mão; uma lança; homem-criança, e morte instantânea.

Conto: São JorgeWhere stories live. Discover now