Roupas & Armas

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Depois da tragédia que mudou a família, Dona Júlia tem estado nervosa com suas suspeitas de que Levi estava fazendo algo. Dos dois filhos que ficaram, o mais velho virou homem, mas ele, agora mais caçula do que nunca, está solto na rua, dando trabalho, deixando-a de cabelo em pé. Há dias que a mãe que parou de trabalhar na casa da família para trabalhar em casa de família não viu o menino fazer a marcha do Cavaleiro, reabilitar o antigo chinelo e pôr por baixo deles duas latas de sardinha só pra-caminhar pa-lá e pa-cá em ca ca ca no calcanhar.

Metade de um cabo de vassoura casado a uma cabeça de garrafa pet virou uma espada, com o plástico determinando a fronteira entre cabo e lâmina, e o pequeno casulo de plástico verde transforma-se em protetor de mão do guerreiro. Da feira de domingo serve o plano de fundo e pano imundo, jogado e desvalorizado. Quando quem cata é o gari, lixo é lixo, porque aquilo é peça imunda e nada mais; quando quem cata é o guri, lixo é luxo, porque a peça inunda a cabeça e algo mais, mas mais tarde sentiu na pele uma duas trinta e três picadas de formigas da cor do saco, da cor dor, a cor do ardor, oh o senhor, salve Levi da Capadoce!

No outro belo dia, não se sabe se por sorte; se por azar; se por acaso, o garoto encontrou o objeto de seus desejos, que era nada mais nada menos que um velotrol. Sim, um simples velotrol sem rodas, que não importava de estar no lixo, tampouco de estar sem rodas, o importante era a cabeça de cavalo. Na verdade era um burro, mas também não importava, o luxo e o lixo são e estão juntos e em busca de um só objetivo: fazer o herói ideal real.

Pancadas e cortes, decapitação animal bem sucedida, mãos na cabeça, hora de voltar e agradecer, porque o dia qualquer se transformou no dia o qual quer realizar-se. Esse foi o tempero da resenha com Raul, melhor amigo de Levi, que ouviu e envolveu-se no projeto. Felicidade só é felicidade quando compartilhada e a lei da infância é: pés no chão e cabeça nas nuvens.

O burro era agora cavalo de verdade. Mesmo os adultos teriam de admitir. A brincadeira ficou séria. Raul suspirou, já estava tudo pronto, mas Levi rebateu, porque ainda faltava uma coisinha.

— Mas o quê? O que-que ainda falta?

A resposta levava os dois garotos à porta de um bar em pleno meio dia, sol a pino, quando homens são só corpos suados e vontade de almoçar. Ninguém está feliz, mas ninguém diz nada. De repente, no meio da confusão da má hora, o dono do bar, seu Pedro, pensou ter visto dois vultos na entrada do bar e benzeu-se de ação-reflexo, porque meio dia é hora traiçoeira, hora que o coisa-ruim está na rua.

Passou a vista mais uma vez na porta do bar e não é que, no que foi e voltou, pousou as vistas... E pimba! Duas coisinhas, dois garotos, ao pé do balcão, olhando-o com cara de quem quer pedir, o que o fez coçar as costas da cabeça. Problemas à vista...

Chegada de criança nunca é bom sinal: amolece demais a mulher quando tá na barriga; só faz chorar quando nasce; desobedece quando grandinho, e, se cair doente, a culpa é do adulto ainda por cima. Mas, não tinha jeito, era o filho de Zé Jorge, e Ari, filho de conhecido.

Apesar da péssima previsão, se manteve quieto, estudioso e em silêncio, pensando na melhor forma de se livrar das muriçocas que já zumbiam no balcão. Ele não devolveu o "boa tarde" que recebeu, só deu a patada e esperou reação.

— Diga!

— A gente queria...

— Fala logo!

— A gente quer uma coisa que está lá atrás...

— Oh seux-minino, melhor sair daqui. Sai daqui, vão zoar seux-pai.

E foi aí que o senhor desviou as vistas para Jorge Levi, que abaixou a cabeça e saiu do depósito murcho em marcha a não ouvir-se as passadas. O sempre frouxo, Raul, não arredou o pé, pelo contrário, de lá mesmo cuspiu o tiro verbal na alma do véi.

— O quê? Zé-Jorge? Eu não sabia. Chame seu amigo aí...

Eternos seis minutos se passaram e eis que estava nas mãos do mago magro míope. Levi, incrédulo, fez desabrochar o sorriso mais belo, o sorriso com a marca da eterna gratidão. Era a tal da proteção, a proteção tão desejada: a proteção plástica de uma garrafa de cinco litros de vinho, o elmo do cavaleiro.

No outro dia, fim da tarde, hora da verdade. Da boca do beco onde desemboca quem sai e quem entra, quem se movimenta, o cavaleiro está montado: elmo na cabeça, capa vermela, espada em punho, pés de lata; cavalo cabeça de burro, a bela monta e nada mais. O momento se aproxima. Está agora com a cabeça em seu mundo encantado e com corpo na entrada da minhoca de ar, todos olham, o cavaleiro ignora, é superior e fiel à missão dupla de testar o uniforme de cavaleiro e esquentar o sangue para vencer o banho frio.

Três dois um, START, e lá vai ele em disparada sem pensar, sem piscar, sem avisar, sem pedir licença, passando como flecha atirada, palavra falada, em disparada para dentro do beco e Raul, que demorou meio segundo, ficou para trás e achou estranho aquilo, porque o melhor amigo parecia outro. E lá vai Levi, leve e livre como nos livros.

Os outros garotos, ainda que pés tivessem, não o alcançavam; ainda que tivessem mãos, não o tocavam. Ainda que tivessem olhos, os garotos não o viam. Linhas de pipas se arrebentavam sem o corpo amarrar. E não puderam, nem em pensamentos, lhe fazerem mal. Armas de água, o corpo não alcançaram. Era o super-Levi, vestido com as roupas e as armas de Jorge. E, enfim, é fim. Da corrida, da missão, da tarde! Reverência e referência ao céu, bênção, pai.

Salve Jorge, da Capa dócil.

Salve Jorge, da Capa dócil

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Conto: São JorgeOpowieści tętniące życiem. Odkryj je teraz