Pointer

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Observem bem, porque neste exato momento, uma família está sentada à mesa, almoçando, tal como sempre fazem aos sábados. E, debaixo dessa mesa está nada mais nada menos que um cão, melhor, uma cadela, criatura nunca tida como importante, mas que hoje será peça chave de toda questão.

Qual maior importância um animal pode ter em uma trama? Respondo essa pergunta com outra: o personagem principal merece ou não maior destaque no desenrolar dos fatos? Sim, sabemos todos nós. Agora a pergunta bombástica é: e se, antes de ouvir o causo, você soubesse que o narrador é, na verdade, ela, a cadela, o que você faria? Pois morra, se respondeu morrer, porque, por incrível que pareça, essa é a realidade da qual ninguém pode fugir meu bem: eu sou ela, a cadela narradora. Aceite os fatos. Não gostou? Pois morda os cotovelos que passa.

Sou Poli, cheguei nesta casa envolvida num pano que, por acaso, era a camisa do Colégio Polivalente. Daí o nome, Poli. Eu só soube disso grande. Com o passar do tempo, aprendi que tudo que é Poli é mais. Testemunhei a vida escolar de Débora, vi as separações de sílabas, onde as palavras maiores eram chamadas de polissílabas. Dificuldade no ginásio, com os temidos polinômios. Por isso, entendi que nasci e fui batizada para ser mais e melhor que os outros cães.

Conversa vai, conversa vem, aprendi, de orelhada como sempre, o que é ser valente e amei ouvir aquilo e foi aí que fechei a conta e decidi que se Poli eu já era por sorte de batismo, valente eu seria por determinação e esforço. Estava decidida, eu seria a cadela Polivalente por nascimento e merecimento e foi a custo desse sonho que eu comecei a me tornar a cadela anti-social do beco.

Peguei rápido o jeito de todos da casa, dei a todos eles a resposta não que eu queria, mas a que eles precisavam receber de mim e por isso sou amada por todos. Sou quieta e silenciosa pela manhã quando estou com Dona Lurdinha, porque é assim que ela é. Fico deitada na cozinha enquanto cozinha. Ela me acha companheira só por causa isso, o que me rende um lucro duplo: deitar, sentir cheiro de comida gostosa, e ser amada no final pela matriarca de coração sem igual.

Também sei ser fiel e, até hoje, espero em todo fim de tarde seu Mauro chegar do trabalho. Antes fazia festas absurdas, com direito a xixi na falsidade. Só ele tinha direito ao xixi na festa de reencontro, porque só ele estoura o champagne nas festa da virada de ano. Hoje não precisa mais fingir tanto assim, porque já xodó. Não saio do pé do portão enquanto ele não chega e ele diz que é isso que o faz gostar mais e mais de mim a cada dia. Ok, seu Mauro, seja feita vossa vontade, meu chefe. De quebra, ainda ficou eu quieta em meu canto, só fingindo que não sei de nada.

Correr e pegar sandália. Bastou para Jonatas se derreter. Quando saía com ele para fazer "as coisas" na rua, obedecia somente a ele. Amigos também jogavam e eu ignorava a todos, pegava somente a sandália dele. Funcionou. Hoje, quem compra a minha ração é ele e ainda tem briga se outra pessoa o fizer.

Já com Débora o caminho é outro, o segredo é silencioso. Me aproximo barulhando somente com minhas unhinhas tilintando no piso, de leve. É assim que ela fala: "unhinhas". Chego ali de mansinha, como quem não quer nada, me deito perto do pé dela e, pouco tempo depois, dedos do pé começam a passear pelas minhas costas, beliscar de leve as minhas orelhas. Fico de barriga pra cima, facilito o paparico. Ela larga os livros, vem me alisar, falar um monte de coisas sem sentido com voz fininha, e depois, volta aos estudos, aí eu já sei que já é hora de sair para voltar só a noite. Foi assim que eu passei adormir no quarto mais cheiroso da casa.

Não se engane você, porém, com a boa prosa que sai da minha boca. Sou diva, sim, mas só com a família. Com estranhos o procedimento é bem outro. Se tu se faz perdiz, eu me transformo em sua natural predadora. Os vizinhos sabem como é que a banda toca: aqui, vacilou, dente passou. Calcanhares, panturrilhas, glúteos vivem por aí, aos montes, com as minhas assinaturas caninas pelas redondezas. Sei também que é exatamente por isso que eles me odeiam, e eu adoro isso, adoro que me odeiem. Mais gosto e menos arrependimento na hora de decidir entre fazer ou não fazer a minha próxima vítima.

Conto: São JorgeKde žijí příběhy. Začni objevovat