AmandAmina

68 13 49
                                    

Passada a tempestade, hora de voltar a abrir os olhos e perceber que dividia quarto com outra mulher. Uma piscadinha de olhos e acordou sozinha, falando com as paredes, o nervoso bateu, mas, por enquanto, há atenção somente para os desesperos mais urgentes. Pôs as duas mãos na barriga.

O menino, cadê? Se você entra grávida num hospital, acorda sabe-se lá Deus depois de quanto tempo e não vê a criança que estava em sua barriga de seu lado, pensa-se logo no pior automaticamente. E começou a choradeira silenciosa e solitária, não tinha mais ninguém no quarto e era madrugada.

Voltou a desmaiar de tão exausta, ainda sem conseguir mexer os músculos do rosto, nem as mãos, porque estavam amarradas na lateral da cama. Tentou se soltar, soltou um grito, sentou-se na cama após despertar de outro sonho. As coisas estavam diferentes, havia uma enfermeira no quarto, então, depois de perguntar mil vezes obteve a resposta: calma, Amanda, o menino Elvis estava fora de perigo.

— Elvis? É esse o nome dele é?

— Amanda, você só falava nesse nome, enquanto delirava, então...

— Eu?

— Sim, você repetia: "Elvis, Elvis não pode morrer, Elvis não pode morrer." O que-que a gente ia pensar?

A moça deu um galope na cama para poder ver quem estava falando com ela. Uma simples enfermeira não ia falar daquela forma e, pensando bem, a voz era conhecida. Uma olhada melhor, e...

— Renata, é você! Pensei que fosse uma enfermeira.

— Sim, eu, Renata. Nem invente, o efeito do sedativo já passou, você lembrou meu nome, então lembra que eu tenho medo de sangue também.

— É... É estúpido achar que você pode ser uma enfermeira. Você odeia hospital e cemitério, eu sei. Quem me amarrou na cama, você?

— Que eu saiba, ninguém.

— Verdade?

— Sim, mas esquece isso. Voltando: você só falava em Elvis, Elvis, Elvis. Então, Elvis nele, só não botamos o nome todo, porque não sabemos o nome todo do pai, e o avô não pôde vir...

— Então, tem Figueiras?

— Sim.

— Ótimo. Posso ver ele agora?

— Não, ele já está em casa. Amanda, você dormiu duas semanas. Preciso ir, daqui a pouco a visita encerra, e eu vou trabalhar daqui mesmo. Tentei uma substituição para voltar com você, mas não rolou. Agora, sobre você, uma coisa é certa: nós só temos muito é que agradecer a Deus.

A irmã se retirou do quarto deixando essa boa mensagem. Sim, era preciso agradecer. Agradecer à mãe que nem sabia que a filha estava de volta e seassustou quando se deparou com filha no quarto que dividia com a irmã. Situação que piorou mesmo quando Dona Ângela surpreendeu-se com a filha dopada, depois de tomar remédio de pressão por conta própria.

Aí foi só ladeira abaixo, começou a correria do socorro e é aí que vem o momento tragicômico, quando tiveram que encontrar o carro de mão antes do carro pra levar pro hospital. Tirar uma grávida desmaiada de dentro de um beco não é fácil. Ela não sabe, mas seu momento pré-socorro foi interrompido, porque mais adiante, na casa mais a frente um pai que batia no filho, o que chocou, mobilizou a vizinhança e engarrafou a boca do beco.

Amanda não sabe nem vai saber, porque já estava gelada e inconsciente, e sua salvação chamava-se Renata, valente e renitente, que doava de si lágrimas, sacolejos, e gritos de animação, massagem cardíaca, respiração boca a boca egritos de socorro. Vinha lá de dentro do beco na frente do carro de mão, segurando o corpo, abrindo caminho, gritando necessidade de um carro ao mesmo tempo que mantinha aquela alma na Terra a base de tapas na cara.

Era a heroína que seguia em seu ato tão lindo quanto inútil tapeando a irmã e a morte com fé na ação e na oração: acreditava que enquanto tapeava o rosto da irmã mais velha tapeava também a morte, impedindo-a de chegar só pelo simples fato dela estar ali vigiando o corpo da irmã. Era triste e assustador, mas era lindo demais.

Aquilo moveu os outros, pela enfermeira, não pela enferma. A multidão, vilã até então, foi convertida à base dos gritos de Renata, e passou a ajudar no socorro. Os preocupados em ver um desfecho trágico de uma família, estavam agora preocupados com o final feliz de outra, e assim pararam de parar pra assistir e passaram a mover-se para assistir. Em um segundo estavam no carro.

Amanda ressuscitou, Renata estava feliz, mas ver a irmã mastigando ovento e dizendo que formiga tem gosto de ferro assustou muito. Aí veio o monólogo: baleia, baleia, baleia. Dali pro hospital foi o maior corre de todos os tempos, entre uma ação e outra, ela lembrou o porquê de ter que agradecer à sua sorte. Afinal, foino meio dos gritos de Renata que uma coisa se sobressaiu, um rosto, visto ainda no beco.

O rosto do garoto da casa do lado, o garoto que venceu as previsões de que a família dele iria passar fome depois que o patriarca morreu. Aquilo mexeu com algo dentro dela, olhos corajosos, o casaco verde, uma simbologia. Esperança, a palavra é estranha, mas, encheu o vazio que sentia em si de vida. Não tinha mais jeito, já havia sido capturada, tinha mais era que parar de chiar e tratar de cuidar de quem dependia dela, pois irmão que é irmão, que não engravida, mesmo assim...

— Eu sei, ele é pai do menino.

Amanda assustou-se, e entrou em parafusos depois de ouvir a resposta da enfermeira. Outro sonho maluco, tão maluco como entrar na máquina do tempo. Se era um sonho, então, por que o dente estava de fato partido... E a testa também. Outra vez a voz era estranhamente conhecida. Outro movimento e...

— O quê... Quem é você?

— Tu é cega ou é maluca? Eu sou você... Amanda... Eu sou a você que ainda vai nascer.

— Como isso pode acontecer?

— Não importa! Não estou aqui para conversar. Acorde!

Em movimento simultâneo ao do golpe que recebeu de sua imagem, abriu os olhos no mundo real, era o sucesso do desfibrilador na terceira investida. Já que a morte não veio, chegou a ressaca moral com solidão e todo resto, o que a fez desmaiar de novo e, mais tarde, quando acordou novamente, já via-se dividindo quarto com outra mulher.

Tempo depois e chega Renata no quarto, já era o dia de ir, maior doideira. No táxi, voltando para casa, Amanda olhava para o nada, estava estafada, mas ali estava também a vontade enorme de chorar por quem lhe segurou a alma no mundo.

Pausa pra não enlouquecer paciente-mente digeriu tudo, obedeceu em silêncio, cedeu à vontade dos olhos que agora queimam e teimam em oferecer a um anônimo o seu mais singelo e valioso presente em forma de agradecimento: pequenas porções de diamantes líquido oculares de La Sonnambula eram as lágrimas de batismo, as primeiras de mãe recém-nascida em sua saga de dia infinito que estava só começando.

Conto: São JorgeWhere stories live. Discover now