Capítulo 19

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| A L I C E |

- Não precisa me buscar, pai. - digo - Amanhã cedo tenho aula e vou sair tarde do hospital hoje, achei esse arranjo mais fácil. - minto e ouço seu suspiro contrariado do outro lado.

- Tudo bem, mas mande uma mensagem quando chegar no hotel.

- Pode deixar. - aperto o sinal para descer no próximo ponto e encerro a chamada.

Gostaria de ficar escondida no meu próprio quarto mais tarde, apenas para ver a cara do Nathaniel. A sua decepção e também, muito provavelmente, a sua irritação. Deus sabe que aquele homem é uma montanha-russa. E pensar nele ao perceber que não teve controle sobre mim dessa vez, faz um sorriso sacana nascer nos seus lábios. Pelo menos, pude encontrar uma pequena parte divertida em toda essa situação de merda.

Caminho pela calçada movimentada com os pensamentos a deriva. Há dois anos a minha rotina consistia em faculdade e depois o hospital, e ficar assim, sem um rumo durante todo o dia, sem ter o que fazer, é esquisito. Uma sensação de fracasso e ainda assim um tanto libertador. Mesmo que essa suposta folga tenha vindo de uma forma tão triste. Só espero que isso não faça com que eu perca a chance de ser efetivada, porque se acontecer, juro por Deus que vou matar aquele homem e vou gostar muito.

Uma buzina alta quase me infarta, observo o motorista impaciente e quando ele põe a mão para fora do carro, gesticulando para que eu apresse meus passos, sorrio sem graça e termino de atravessar a rua. Estou realmente dispersa, isso não posso negar.

O check-in é apenas após às duas da tarde, o que me deixa com mais de uma hora vaga e nenhum lugar para ir até lá. Como eu disse, libertador, mas ainda um pouco estranho. Embora não seja de todo ruim esse tempo livre, decido ir até o shopping e aproveitar essa paz forçada. Não que eu vá comprar alguma coisa, até gostaria, mas andar pelos corredores não faz mal a ninguém e é uma boa maneira de gastar esse minutos extras.

Sei que como futura médica deveria me importar com a minha alimentação, mas com o tanto de estresse que vem sendo jogado na minha cabeça e ainda mais com o inferno que foi essa manhã até agora, entro na fila do MC Donald's. Se é para sair da rotina, que seja em todos os sentidos.

A cada mordida em uma nova batata, suspiro. Não lembrava que era tão bom, quase consigo sentir minha barriga aumentando ao ingerir tantas calorias, mas ser magra nunca esteve na minha lista de prioridades, então que se dane. Termino o lanche tão rápido, que quando dou um grande gole no copo gelado de Coca-Cola, sinto meus olhos lacrimejarem na hora. O gelo da bebida atingiu meu cérebro, tenho certeza. É tão desconfortável. Como se fossem mini facas apunhalando minha mente, mas sei que existe uma teoria para isso, então fico mais tranquila ao saber que não estou sofrendo um derrame ou algo do tipo.

Coloco a bandeja em cima do balcão, após descartar o lixo e sigo meu caminho. Feliz e pesada. É tão satisfatório comer uma coisa que você sabe não fazer bem, mas que cura seus problemas enquanto mastiga. Isso deveria fazer parte de alguma terapia, porque é praticamente medicinal.

Sorrio ao olhar as vitrines e minhas costas reclamam com o peso da mochila. Olho novamente no relógio e depois de algumas voltas, entro em uma loja de departamentos. Não posso tomar banho e sair amanhã com a mesma roupa, então uma calcinha e uma camiseta simples já resolve.

- Precisa fazer isso depois que sair da loja, moça. - a atendente interrompe meu movimento, onde eu estava enfiando a sacola no bolso de fora da mochila.

- A nota está na minha mão. - aviso.

- Eu sei, mas é norma. Sinto muito - ela sorri compreensiva e aceno. Que coisa mais sem sentido. Faço o que pediu e assim que encontro um banco disponível, apoio a mochila em cima e guardo a bendita compra.

Talvez eu assista um filme quando chegar ou durma, ainda não escolhi, por mais que depois de comer, a cama parece uma opção bem mais convidativa. Enrolar meu corpo todo em uma boa coberta e ter um sono decente. Nada de preocupação com magias idiotas ou Nathaniel. Apenas eu, curtindo a mim mesmo e esse descanso.

O sol até parece brilhar de um jeito diferente hoje, mais forte, mais claro. Tão bonito. Como se soubesse, de algum jeito, o vendaval que venho recebendo do destino ou talvez isso não passe de uma besteira completa da minha cabeça e eu só esteja apenas testemunhando com mais calma, e atenção o seu poder de todos os dias desde sempre. O que quer que seja, está funcionando. Tranquilizou uma parte do barulho que estava dentro de mim.

O sino toca assim que passo pela entrada e um senhor vem em minha direção.

- Boa tarde, tenho uma reserva.

- Boa tarde. - diz rapidamente e desce o óculos até a ponta do nariz ao observar a tela do computador. Que adorável - Qual seu nome, querida?

- Alice Vieira.

- Preciso do seu documento e da sua assinatura. - após algumas poucas teclas, ele sorri - O pagamento foi pelo aplicativo, está correto?

- Está sim. - entrego meu RG e enquanto a ficha é impressa, passo os olhos pelo saguão. Os móveis são escuros e antigos, o que torna o ambiente quase vintage. É maravilhoso e essa é a vantagem de se morar em Minas Gerais. Tudo aqui tem alguma história e tenho certeza que esse tem a sua.

- É de 1950. - comenta ao se atentar ao meu olhar curioso - Passamos de geração em geração. - diz orgulhoso.

- É um lugar lindo. - declaro - Parabéns pelo cuidado. Está impecável.

- Obrigado. - agradece envergonhado e fica ainda mais adorável - Vou me aposentar no próximo mês e passar para a minha filha.

- E o senhor vai sentir falta. - afirmo ao notar seu semblante.

- Cada santo dia. - ele gargalha e não posso resistir, cubro a boca com a mão e sorrio junto - Bom, não vou ficar te segurando. Pode rubricar aqui. - seu dedo alcança o final do papel - E aqui também, por favor.

- Claro.

- Seus olhos são muito bonitos. - elogia e sorrio enquanto escrevo meu nome - Que tom é esse?

- Castanho. - digo e seguro o riso - Nada de especial.

- Estou velho, mas não sou cego. - diz brincando e ergo o olhar confusa - Nunca vi um assim. Tão claro. Parece um mar que vi na Bahia uma vez, mas faz tanto tempo que ...

- O senhor está enganado. - interrompo - Não são azuis.

- São sim. - puxo o celular do bolso para tentar ver meu reflexo e derrubo a caneta no chão com o choque que estremece meu corpo - Está tudo bem?

- Sim. - digo, mas minhas mãos começam a tremer e coloco para baixo, afastando da sua visão - Só estou um pouco cansada. - murmuro e bocejo, dando mais ênfase a mentira.

- Vou buscar a chave do quarto, então.

Enquanto subo as escadas de dois em dois, deixando de lado minha coluna gritando por algum descanso, sinto meu celular vibrar. Ignoro e continuo quase correndo. Apenas dois andares. Eu consigo.

Passo a chave pela fechadura e puxo o aparelho. Talvez seja do hospital e quero estar disponível se precisarem, mas não é de lá. Claro que não. Por que seria? Eu fui mandada para casa, não iriam atrás de mim e mesmo que fosse, como poderia aparecer no plantão desse jeito, santo Deus?

O nome dele indica duas ligações e uma mensagem.

Eu não queria estragar as coisas para você

Não queria, mas também não faz nada para evitar, pelo contrário, parecia se divertir.
Coloco no silencioso e tranco a porta ao entrar.

Vou direto para o banheiro e um berro escapa dos meus lábios, quando me vejo no espelho.

Meus olhos.

Azuis.

Exatamente iguais ao do Nathaniel.

Chama azul Where stories live. Discover now