Capítulo 1

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Na noite em que os hunos invadiram a China, eu estava voltando para casa pela primeira vez depois de muito tempo. No horizonte distante fumaça se espalhava de cada posto de segurança da grande muralha alertando os soldados de que seu inimigo havia chegado, mas desavisados e despreocupados depois de um longo tempo de paz, ninguém esperava por aquilo. Todos dormiam em paz.

Longe de tudo isso, eu seguia para casa completamente alienado. Assim como todo e qualquer cidadão chinês até então.

Lembro-me de chegar em meio à névoa do amanhecer, com a cidade ainda adormecida. Havia algum som; vacas e cavalos, galinhas já despertas e um ou outro barulho humano, mas nada que lembrasse a cidade que eu tinha deixado para trás três anos antes, quando fui designado a comandar um pequeno pelotão em missões de segurança interna no país. Nada que se comparasse com os hunos que estavam por vir...

A casa maior, com portões adornados por estátuas de guardiões Quilins era a nossa. Meu cavalo a reconheceu ao mesmo tempo em que eu, erguendo as orelhas atentamente e acelerando ligeiramente o passo. Ele conhecia aqueles caminhos de pedra tanto quanto eu, pois nascera ali. Eu mesmo o havia treinado e o escolhera para servir ao exército comigo, mesmo sabendo que Zhen era mais assustadiço do que um cavalo que normalmente seria escolhido para tal serviço. Ainda assim ele era um ótimo companheiro.

Nos fundos da casa ficava o estábulo onde o deixei depois de cuidar pessoalmente de seus arreios e dar-lhe de comer e beber, então entrei silenciosamente pelos fundos, atravessando corredores familiares com altares, vasos e cheiros que remetiam a minha infância.

Meu lar.

Algures nos demais cômodos minha mãe, minha irmã e meus avós dormiam. Já em meu quarto tirei meu uniforme e deitei-me, mesmo ouvindo um galo cantar ao longe. Tudo era tão familiar que não pareceu ter transcorrido mais que alguns minutos entre uma suave luminosidade surgir através da janela e o sono me cobrir com seu manto.

— SHANG!

... E então eu ser acordado.

— É O SHANG! — gritou a absolutamente familiar voz de minha irmã, soando mais forte e potencialmente mais letal que os canhões do exército — SHANG VOLTOU, ELE ESTÁ AQUI!

Eu gemi algum protesto enquanto rolava de minha posição para fora da cama. Qingshan continuava gritando, acordando a casa toda. Eu poderia ouvi-la do outro lado dos portões. Não era a toa que seu nome significava persistência.

Em minutos ela tinha voltado e estava parada na porta de meu quarto respirando em arfadas com os olhos brilhantes e um sorriso no rosto. Senti falta dela.

— Irmão, você voltou! — ela anunciou em voz baixa agora, como se precisasse simplesmente repetir mais uma vez para ter certeza de que era verdade. Entortei a cabeça, sonolento, em resposta.

— Não estava muito certo disso antes, obrigado por confirmar — sorri involuntariamente, espelhando o sorriso de Qingshan. Apesar de sua empolgação continuar a mesma da menina que eu deixara para trás antes de partir com o exército, era uma jovem mulher que me saudava agora — você cresceu, irmãzinha.

Então ela estava pendurada em meu pescoço como só ela — ou então um inimigo muito poderoso — poderia fazer.

— Você chegou bem a tempo! — ela comentou ainda agarrada a mim.

— A tempo de...?

Antes que ela pudesse responder, no entanto, um alvoroço de mulheres e roupas coloridas estava pairando ao meu redor com minha mãe, minhas avós, minhas tias e minha prima complementando a recepção. Distingui vozes surpresas com minha chegada me dando as boas vindas e outras exclamando alegremente que minha chegada fora providencial, eu só não entendia o porquê.

Assim fui arrastado até a mesa para o desjejum, tentando obter alguma informação das mulheres da casa, me lembrando do motivo pelo qual a organização do exército me dava tanta paz... Mulheres!

Minha irmã e Ru Shi, nossa prima, estavam absolutamente felizes com minha chegada, mas nada dispostas a oferecer informações em troca. Entre tigelas de arroz e xícaras de chá e em meio ao falatório das mulheres mais velhas, fui obtendo detalhes aqui e ali por conta própria, como um soldado perdido em território inimigo. Estavam todas vestidas com suas melhores roupas e tia Wu começara a maquiar Qingshan antes mesmo que ela terminasse de comer. Ru Shi já estava com o rosto pintado tal qual uma ave exótica, mal conseguindo piscar direito. Longas camadas de seda colorida a envolviam e penduricalhos em seu penteado faziam barulho toda vez que ela movia a cabeça.

O mundo das mulheres era mesmo uma coisa esquisita. O exército me proporcionava uma sensação de pertença que eu jamais poderia sentir em meio a essa algazarra. Admirava-me ter crescido ali.

— Eu presumo que cheguei a tempo de alguma cerimônia... — comentei testando o terreno. Minha mãe largou uma pilha de potes em cima da mesa com estardalhaço.

— "Alguma cerimônia", francamente Li Shang! A mais importante das cerimônias, simplesmente! — Essa afirmação não me intimidava, anos atrás quando passei em meus exames para o exército, aquela era a cerimônia mais importante da China e não estava vendo ninguém entrando para o exército hoje. Pelo menos com certeza não Qingshan ou Ru Shi. A ideia me fez rir. Mulheres no exército! — Hoje Qingshan e Ru Shi visitarão a casamenteira. — Continuou minha mãe, cruzando os braços — Agora que você chegou, é claro que o levarei até lá também, afinal um oficial do exército na sua idade já está na hora de casar!

Li ShangOnde histórias criam vida. Descubra agora