Narcissus

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"And I want to tell you everything
The words I never got to say the first time around."
Slow Hands, by Niall Horan

— Bom dia, gostaria de falar com H. — o homem de cabelos escuros disse assim que chegou ao caixa. 

Sua barba por fazer era perceptível, os olhos escuros com algumas olheiras e uma pinta perto dos olhos foram o máximo que Mary conseguiu perceber antes de dar um sorriso largo. 

— Olá, bom dia! Irei o chamar, aguarde um minuto, por gentileza. — pediu, e o homem apenas assentiu.

Harry cortava pedaços de cáspia para terminar um arranjo quando Mary apareceu na porta, involuntariamente sorrindo e deixando as cáspias na mesa, batendo as mãos no avental.

— Harry, tem um cliente querendo falar com você. — anunciou, e ele assentiu com a cabeça antes de caminhar até ela.

Poucas pessoas buscavam falar diretamente com ele, a maioria das vezes faziam o primeiro contato pela internet e raramente o conheciam de fato, anunciando o que buscavam com Mary e logo depois sendo repassado para ele, e isso sempre lhe deixava com uma ponta de curiosidade. Talvez fosse uma encomenda? Mas já estava abarrotado, temia não ter tempo de assumir.

Mas ele agradeceu sua namorada antes de sair, batendo a mão no avental ao chegar perto dos vasos e caminhando em direção ao cliente perto do caixa, com as mãos no bolso e postura impecável. Mary diminuiu o passo e assistiu seu namorado se aproximar do homem.

E quando os olhos se encontraram, o sorriso de Harry murchou. 

— Você... — o homem murmurou.

Harry ficou imóvel. Seus olhos pareciam ter perdido o foco por um momento e a realidade duvidosa, sua boca abriu e se fechou várias vezes como se quisesse dizer algo e sabia que nada sairia, pelo menos não naquele momento. O homem a sua frente mantinha um cenho franzido, mas seus olhos denunciavam o que ele mais temia.

Era impossível não o reconhecer. 

— O que você quer?! — Harry esbravejou, fazendo Mary dar um pulo assustada.

Seu punho estava cerrado agora, a ira lhe assolava e se sentia trêmulo. O homem à sua frente agora tinha olhos tristes, mas mantinha a boca numa linha reta, será que se sentia arrependido? 

Harry esperava que sim.

— Filho...

— Diga, o que quer?! 

— Eu vou me casar. 

Aquelas palavras o desestabilizaram, talvez mais do que previa: ele não esboçou reação alguma, mas algo lhe corroía por dentro e não estava certo do motivo. Mary se aproximou um pouco mais, não sabia o que fazer, afinal nunca vira Harry nesse estado, na verdade jamais imaginou que fosse chegar a isso.

E ao olhar o homem, percebeu as semelhanças: apesar de Harry ser bem parecido com Anne, ela conseguia ver semelhança nos cabelos e até mesmo no nariz, o queixo e o formato do rosto. Ela nunca havia ouvido falar do pai de seu namorado, mas também nunca perguntara e eles nunca tocavam no assunto.

Mas Harry guardava mágoa, raiva. Uma ferida nunca cicatrizada, algo que lhe marcara profundamente e o deixava assustado, nervoso. Porque ele ainda se lembrava do dia que Dennik saiu por aquela porta, deixando os três sozinhos, desamparados enquanto Gemma o abraçava e tentava lhe trazer algum conforto, apesar das lágrimas grossas rolando contra seu rosto.

Era um dia de inverno, a neve alta deixava a paisagem bonita e os jovens gostavam de criar bonecos de neve. Mas num dia de neve seu pai saiu por aquela porta para nunca mais voltar, mesmo com todas as súplicas das crianças devastadas, que gritavam em prantos para que ele não fosse. 

E ele foi, mas Harry nunca o perdoou por isso.

— O que espera que eu faça? Que lhe dê parabéns?! Como você tem coragem?! — gritou, fazendo o homem se assustar. 

— Já lhe perdi perdão por...

— Pediu?! É claro que pediu, mas suas palavras não adiantam de nada, nada! — seus olhos marejados já eram perceptíveis.

— Filho...

— Não me chame assim, porra! Você não tem direito algum! Fora daqui, agora! — apontou para a saída, descontrolado.

Dennik suspirou pesadamente antes de deixar a pasta em cima do balcão, saindo da loja aos gritos de Harry o enxotando dali. Assim que seus pés tocaram a calçada, sentiu-se prepotente, triste. 

Era seu filho, seu pequeno que havia se tornado um homem.

Todas as abordagens foram falhas, Dennik saiu do país por alguns anos e quando voltou, seus filhos já adolescentes não o viam como uma figura paterna, mas em sua cabeça deveriam. Eles deveriam perdoar, deveriam seguir em frente e o aceitar, mesmo que Robin tivesse sido uma figura paterna importante na vida das crianças.

Crianças agora que eram adultos com mágoas profundas, jamais ditas. 

E Harry o odiava, por mais forte que fosse a palavra. Ele odiava o fato de seu progenitor os ter deixado, ter aparecido anos depois como se nada tivesse acontecido e tentado os obrigar a o aceitar, odiava ter visto sua mãe chorar inúmeras vezes quando criança e só saber o motivo  mais tarde, por aquela pessoa ter entrado em sua loja com a cara mais lavada do mundo.

Porque ele ia se casar e ainda queria que Harry fizesse as flores.

Harry suspirou pesadamente ainda com lágrimas rolando, pegando a pasta e a jogando no chão enquanto Mary corria para fechar as portas da loja. Estava furioso, a adrenalina corria por suas veias e seria capaz de socar uma parede para aliviar sua fúria, mas se contentou a deslizar até o chão e se sentar ali.

Com as mãos no rosto, ele chorou como há tempos não fazia, sabendo que iria se arrepender mais tarde por isso. Mary caminhou em silêncio e com cuidado até ele, assustada e preocupada, era a primeira vez que o via dessa forma e desejava que isso não acontecesse nunca mais: era um choro baixo, mas sofrido. 

Ele sentiu os braços da menina rodearem seu corpo por trás e seus cabelos fazerem cócegas na lateral de seu rosto, levando sua mão até as dela e entrelaçando as suas. Mary deu um beijo no topo da cabeça de seu namorado e com uma mão livre levou até os cabelos, acariciando os cachos castanhos. 

E de olhos fechados, deixou-se ser embalado por memórias dolorosas e afagos, desejando que tudo aquilo fosse uma piada de mau gosto. Seu corpo tremia e já não estava tão certo do motivo, Mary sussurrava palavras de conforto e fazia preces silenciosas para que Harry ficasse bem, mesmo que parecesse longe naquele momento.

A pasta com ideias de arranjo e o buquê já tinham as fotos espalhadas, e uma risada debochada escapou dos lábios de Harry quando ele abriu os olhos e percebeu que o buquê era feito de narcisos, uma bela ironia do destino. 

— Vamos para casa, Harry. — propôs a garota, afagando seus cabelos. — Chega por hoje.

E derrotado, ele apenas assentiu. 


Sunflower [H.S] [PT/BR]Where stories live. Discover now