06 de dezembro de 2020 - dia 20 da luz

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A televisão ficou ligada no meu quarto o dia inteiro, sintonizada em um canal da televisão fechada que só passava notícias. Com uma pilha de nervos, eu me dividia entre encarar o que estava sendo dito, me corroendo de ódio e tentar focar nos meus estudos, sem saber se aquilo tudo teria alguma validade. E, se tivesse, quando seria testado.

— Mais uma vez o ENEM corre o risco de ser adiado — a repórter repetia e, por mais que eu tentasse me concentrar em achar o log da equação, eu não conseguia. — A pandemia vem atrasado bastante a vida dos estudantes que estão prestando vestibular esse ano...

A vontade de desistir de tudo era gigantesca. Eu sabia que provavelmente realizar a prova do ENEM em janeiro era um risco. Por mais que muita gente se comportasse como se a pandemia já tivesse passado, a verdade é que ela ainda estava lotando hospitais e com índice de mortalidade quase tão alto quanto seu pico. Todavia, fazia quase um ano que eu estava estudando todo dia, sem parar, enfiado naquela montanha de insegurança. Todo mundo sabia que a época do vestibular já era um estresse só – essa história de não saber o que será do futuro era muito desgastante, mas fazer vestibular em plena pandemia era doloroso.

A insegurança minava toda minha força de vontade para continuar estudando e, ainda por cima, me dava gastrite. Mesmo assim, eu não conseguia desgrudar os olhos das notícias. Ninguém tinha uma resposta derradeira e essa parecia ser a pior parte. Eu não saber o que fazer da minha vida fazia parte, mas o governo não saber o que fazer da vida dele – e, como consequência, da nossa – era bastante irritante e um pouco desolador. Sentia que estava nadando contra uma forte corrente, tão forte que eu não sabia se seria capaz de ganhar dela.

Lá pelas tantas desisti de fingir que estava estudando e comecei a procurar mais notícias ou qualquer tipo de aprofundamento delas pela internet. Entrei em um buraco negro e fiquei com o estômago tão embrulhado que até disse para minha mãe que não ia jantar. Sabia que aquele comportamento era um pouco nocivo, mas eu não conseguia evitar. Como poderia, quando sentia que meu futuro estava em jogo? Irritado e com os olhos ardendo, só me dei conta da hora que era quando entrei em um site de notícias que tinha, em seu cabeçalho, a data completa e a hora atual.

07 de dezembro de 2020, 02h17

Xinguei o mais alto que o horário me permitia. Estranhei minha mãe não ter passado no meu quarto e me mandado ir para cama, então fui até a sala verificar se havia algo errado. Encontrei-a largada no sofá, aos roncos, com o controle pendurado na mão e a televisão no mesmo canal de notícias que eu passei o dia inteiro assistindo. Dormir no sofá era algo tão corriqueiro para ela que costumeiramente eu pensava como ela faria para voltar a dormir na cama, quando eu não morasse mais naquela casa para cutucá-la e dizer para ela ir dormir no lugar correto.

— Mãe — chamei, cutucando seu braço. — Manhê!

Ela abriu um dos olhos. Depois o outro. Depois se sentou no sofá com a expressão perdida e confusa, como sempre fazia quando eu a acordava. Eu dei uma risada, mas tentei não fazer isso muito alto para não chateá-la.

— Murilo! — Chamou, ainda perdida.

— Vai dormir na cama, mãe — disse, com o riso preso.

— Não estava dormindo não — ela disse, levantando-se do sofá. — Estava só descansando um pouquinho...

— Sei — respondi.

Cambaleando, ela finalmente se convenceu a ir até sua cama. Acompanhei-a por todo trajeto para me certificar de que ela estava devidamente deitada e liguei o ventilador porque, mais uma vez, era uma noite de calor de verão em fim de primavera. Voltei até a sala para desligar tudo que minha mãe tinha deixado ligado e tomei um copo de água na cozinha. Enfim, fui até meu quarto, pensando se teria condições de dormir ou se estava nervoso demais para isso.

Resolvi tentar. Afinal, no dia seguinte precisava acordar cedo se quisesse pegar a matéria que deixei de estudar hoje por conta de todo caos governamental. Desliguei minha televisão, coloquei o computador para hibernar, virei o ventilador na minha direção e apaguei a luz. Foi um pouco antes de me deitar na cama que percebi que meu quarto estava ainda todo iluminado. As luzes multicoloridas da vizinha ainda estavam acessas e invadiam meu quarto, com mais força do que o normal. Com tudo apagado, elas literalmente pareciam fazer parte da minha casa.

Era a gota d'água depois de um dia de cão como eu tinha tido. Tremendo de raiva fui até a janela, só para me certificar que as luzes vinham mesmo da vizinha. É claro que sim. Sua varanda estava toda iluminada, como se fosse um daqueles ônibus de Natal da Coca-Cola e, pior, não parecia haver nenhuma movimentação na casa. A garota tinha ido dormir e largado aquela bosta piscando. Olhei de volta para meu quarto, brilhando e refletindo as luzes para todo canto. Mesmo que eu estivesse morto de sono, seria impossível dormir. Pilhado como eu estava, pior ainda. Sem ter nenhuma alternativa que não aquela, me debrucei um pouco mais na janela e gritei:

— Desliga essa merda!

Minha voz propagou muito mais do que eu esperava. Acho que era isso que acontecia quando você gritava em um vão como aquele, em plena madrugada. Esperei algum vizinho aparecer na janela e me mandar para aquele lugar, mas para minha surpresa, a única reação que tive foi de alguém na varanda iluminada.

A rede se mexeu inteirinha, como se estivesse sendo palco de uma luta livre. Demorei um tempo para me dar conta que era a garota da varanda que estava nela. Só percebi quando ela finalmente conseguiu se desvencilhar de todas as franjas e se levantar, como cara de quem não estava entendendo nada. Ensaiei uma fuga da janela, mas ela me viu antes disso. Olhando de mim para a varanda e, depois, para seu pulso, ela deu outro pulo e saiu correndo para tirar as luzes da tomada. Que automação e inteligência artificial que nada!

— Desculpa! — Ela gritou de volta.

Um pouco constrangido por ter gritado daquela forma, eu simplesmente fechei a cortina.

A Luz Que Há Entre NósWhere stories live. Discover now