18 de dezembro de 2020 - Dia 32 da luz

75 22 1
                                    

Decidi que estava mais do que na hora de tirar a prova se Luzia acendia as luzes todo dia ou se tinha alguma programação por trás. Devido a acontecimentos anteriores que não devem ser mencionados novamente, eu tinha bastante certeza de que as luzes eram ligadas e desligadas manualmente. Todavia, elas ligavam sempre tão certinho no mesmo horário que eu ficava em dúvida.

Por isso, quando deram seis e cinquenta eu já fui ficar de tocaia na janela. Não me orgulho de dizer que me escondi um pouco atrás das cortinas finas a fim de evitar que ela me visse logo de primeira. Quando o relógio virou exatamente sete horas eu vi Luzia sair de dentro do apartamento e ir até a varanda. Ela abaixou-se, provavelmente para chegar até a tomada e, de uma hora para a outra, todas as luzes se acenderam.

Tinha algo de mágico na forma como todas as luzinhas se ligavam. Todas de uma vez, mas cada uma no seu tempo. Tudo parecia ainda mais brilhante devido à escuridão que reinava entre nossos dois prédios. As luzes literalmente ficavam entre nós, refletindo no paredão do meu prédio e nos espaços vazios do prédio dela. Não sabia mais dizer por que eu odiava tanto as luzinhas no início de tudo. Agora elas me faziam sorrir. Assim como a responsável por elas.

Luzia levantou a cabeça após realizar a ligação e me viu na janela.

— Oi — eu disse.

— Oi, Murilo — ela respondeu, dando um de seus acenos simpáticos. — Estudou muito hoje?

Franzi o cenho, confuso. A resposta para a pergunta era sim, é claro. Não sabia mais o que era a vida sem acordar e ir dormir repassando as matérias do vestibular. Mas... Como ela sabia que eu estava estudando? Será que dava para me ver dentro do meu quarto, tirando e colocando meus bonés da cabeça? Tinha começado a usá-los mesmo dentro de casa quando reparei que estava com um tique nervoso que me fazia arrancar cabelos com constância e comecei a desenvolver uma leve calvície. Por sorte, esse era o tipo de coisa que não dava para ver a distância. E é claro que ainda estava de boné.

— Não tanto quanto eu gostaria — respondi, soltando um suspiro. — Mas eu tentei.

— Por que você estuda tanto? — Perguntou ela, debruçando-se na sacada de sua varanda. Seu rosto era emoldurado pelas luzinhas de sua varanda e ela parecia ainda mais bonita. — Está fazendo alguma faculdade muito difícil?

— Na verdade, estou fazendo vestibular — respondi, me ajeitando um pouco melhor na janela também. Nem de longe ficaria tão bem quanto ela, mas queria tentar mostrar meu melhor ângulo. — Quero cursar computação.

— Meu Deus, você ainda está no Ensino Médio? — Perguntou, dando uma risada. — Que baby!

— Dezoito anos feitos durante a pandemia — respondi, fazendo uma careta. — Mas você já está na faculdade, então?

— Dezenove anos feitos durante a pandemia — ela respondeu, dando um sorriso mais largo. — Faço faculdade de psicologia — ponderou por alguns instantes, antes de continuar. — Na verdade, faço mais ou menos. Comecei o primeiro período, entramos em pandemia e as aulas em regime EAD só começaram mês passado...

— Está tudo muito louco — disse, compadecido de sua dor. — Especialmente a vida do estudante.

— Nem me fale — respondeu, dando um suspiro alto. — Sonhei a vida inteira com minha faculdade para meu primeiro ano ser assim...

Nós dois ficamos em silêncio por alguns segundos. Entendia a frustração. Se Deus quiser estaria passando por ela em breve. Quando fosse aprovado no vestibular e não pudesse começar minha faculdade ao vivo. Primeiro eu precisava superar a adversidade que era prestar vestibular no meio de uma pandemia.

— Sei que, na verdade, sou muito sortuda — ela interrompeu o silêncio. — Reclamar do tempo que fiquei sem estudar parece muito egoísta com tudo isso que está acontecendo aí fora.

— Eu sei — concordei. — Me sinto da mesma forma.

— É como se a gente nem tivesse direito de ficar chateado, sabe? — Luzia disse, mais uma vez suspirando pesado. — Se estamos saudáveis e se quem amamos também está, já é motivo para levantar as mãos para o céu e agradecer muito.

— Sim — concordei mais uma vez. Não queria parecer uma pessoa sem opinião, mas ela era muito sensata. E mais velha! — Mas enquanto isso tem um monte de gente por aí furando a quarentena por futilidade...

— Nossa, com certeza — Luzia concordou. — Eu fico muito irritada com isso!

Desandamos a falar sobre os desertores da pandemia. Os negacionistas. Aqueles que achavam que era tudo uma conspiração. Quem justificava as saídas por conta da "saúde mental", quando era bastante claro que não era o caso. Falamos para caramba. Falar com Luzia era muito fácil. Fazia muito tempo que não conversava "ao vivo" com alguém da minha idade. Ela compartilhava suas angústias com a pandemia, histórias engraçadas de suas aulas EAD e esperanças para o novo ano. Eu contei que decorei a casa por causa dela, compartilhei meus medos com o ENEM e meus sonhos para meu futuro profissional.

A conversa fluía tanto que eu nem senti o tempo passar. Só calamos a boca, nos demos boa noite e entramos quando um de nossos vizinhos foi até a janela e gritou um sssssssssssssshhhhhhhhhhhhhhhhh tão alto que não deu para ignorar.

Dormi feliz. Pela primeira vez em muito, muito tempo.

A Luz Que Há Entre NósWhere stories live. Discover now