crônicas de apartamento.

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encerro a fruição do que não teria em outros termos, porque, se analisarmos por mais uma hora, veremos a finalidade que espera todas as reticências do espaço. preenchemos com suspiros e ajustes, sons de ferramenta apertando parafusos, mas vemos, se semicerrarmos os olhos ao horizonte, que a bagunça ainda ocupa a sala, fazendo o peso e o tamanho de um elefante – e não podemos ignorar o elefante na sala. desfio a bola de lã do gato puxando um pedaço, calma e concentrada, desfazendo nós feitos por ele enquanto varava a madrugada brincando, mas as folhas ainda preenchem meus ouvidos vazios com o farfalhar que o vento provoca e minha respiração ainda parece ofegante; puxo e desfaço, com cuidado, o nó que prendeu o fio, puxo de novo com a pontinha do dedo que aponta e pontua e cala e do polegar. mas ainda há ali pelo meio do tapete uma lasca de caos. do tamanho de um champignon no strogonoff, quase perfeitamente cortado, tão taciturno que eu poderia ignorar por agora, mas sei que em dado momento ele gritará em meu rosto, tomará uma cor forte, crescerá e será, novamente, o elefante na sala. até lá eu desfio e me desafio a não prestar atenção no próximo passo, no próximo minuto, na próxima música da Gal que tocará na playlist aleatória, na próxima pedalada pela ciclovia que liga Jardim Botânico e São Sebastião e no próximo capítulo da Crônica do Pássaro de Corda. a tranquilidade em mim, porém, é efêmera. é uma tela em branco. é o espaço entrelinhas. e meu balanço eterno é bagunçar o monocromático com uma cor densa que pesa a mente, pesa em tudo. então não sei se a tecla de espaço clicada se interromperá ao próximo toque do telefone e eu vou escrever alguma tragédia grega para preencher a folha. a incerteza desses dias alimenta o que eu quero ignorar e brinca com minha sanidade, mas a certeza no universo torna o preto intenso em branco novamente e aí não posso ver estrelas perdidas em meu caminho, é uma palidez vazia que não me apetece. incerteza é movimento inesperado, imprevisível e desesperado, mas talvez seja também a saia do carimbó, o mundo rodando e as nuvens assumindo formatos indefinidos ou as folhas se acarinhando pelas árvores. por enquanto desfio e desfaço um nó ou outro. mas o caos irá gritar e se desesperar e apertar meu pescoço por cima da minha blusa preta turtleneck. porque o elefante ainda está na sala.

carpe noctemTempat cerita menjadi hidup. Temukan sekarang