WHEN I WAS A CHILD I HAD A FEVER.

37 0 0
                                    

hoje chorei enquanto cortava abacaxi na cozinha. copiosamente. um rio Chico inteiro descia pelos meus olhos e, por conta da minha quarentena por suspeita de covid, eu estava sozinha e me deixei soluçar com a faca na mão.
em todos os fins e começos de ano eu sou tomada por uma depressão sazonal. e um sentimento de saudade do que não tive e do que acho que deveria ter. uma repulsa pela forma que agi em algum dia de dois mil e dezesseis e um orgulho calado de alguma vitória pequena que eu amassei até que ela fosse diminuta. eu penso que eu retrocedo em algum dia de dezembro pra quando eu não sabia formar palavras na língua e fico assim até o carnaval me florescer (no caso da pandemia, já me basta o feriado).
o saudosismo.
agora, numa quinta-feira, no meio do meu isolamento, tenho pensado em quando eu era criança e tive uma febre. antes da febre e durante a chuva, meus pais estavam em um batizado de alguém que eu não me recordo e eu estava ao lado da capela, embaixo dos pés de manga, sentindo as gotas grossas que escorregavam pelas folhas e caíam bem na minha cabeça. pong! no meu ombro. plim! no meu nariz e boca, e me molhavam enquanto eu brincava com os netos da vizinha de vovó. meu pai sempre foi desamarrado de algumas regras sociais, então, quando me viu e pensou no valor do expectorante, gritou da janela o meu nome. no meio do batizado. acho que, dentro da capela, o padre até deixou a cuia cair. o resto eu não lembro. só lembro da febre. e de como a chuva estava gostosa. também lembro de me perguntar como uma coisa tão boa me fazia sentir tão mal. e como eu, sozinha e com febre, ainda tive que ser punida pela travessura de banhar na chuva.
sempre tento justificar a sucessão de fatos. eu banhei na chuva e meu pai não queria gastar com xarope, além de eu ser a filha dele e ele querer me proteger, mas nesse fim de ano mesmo eu lembrei que nunca mais dancei na chuva como naquele dia. em 2021 eu só pedi desculpas. em 2020 também. em 2019 também e em 2022 será a mesma coisa. "esqueci de deixar na mesa. desculpa." "estraguei a receita. desculpa." "deixei cair sem querer. desculpa." "odeio sem motivo. perdão."
seguindo a linha de tentativa-erro-foimalaí, eu passei a me questionar o porquê de todo mundo ter direito de ser injusto e eu não ser contemplada nisso, por que eu devo pedir perdão? para ser boa? e se eu for boa pro mundo e, pra mim, o córrego mais insalubre existente? daí respondi no meu âmago, o mesmo que odeia e pede desculpas por sentir, que eu me questionei em 2008 e me questiono em 2022. no fim é a mesma pessoa tentando dançar debaixo de chuva de novo matando um leão por dia sem querer.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Jan 13, 2022 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

carpe noctemOnde histórias criam vida. Descubra agora