1 • Traga o fim de volta

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Maio, 2020.


Se a morte tinha uma voz, eu podia jurar que a ouvia cantarolar sempre que um vento gélido passava por mim, farfalhando as folhas das árvores e ondulando o verde brilhante da grama do cemitério. Apertando o bocado de flores em minhas mãos, eu olhei em volta como se ainda esperasse encontrar algo ali além de penumbra e lápides cinzentas. Aquele não era um lugar destinado a ser feliz, mas, ainda assim, um agouro especialmente lúgubre se instalara naquele dia; um tão carregado quanto as estranhas nuvens de chuva que cobriam o céu de Bronshire em plena primavera.

Suspirando, eu engoli a sensação em seco e voltei a encarar uma lápide em especial. Ela era nova ali, com as bordas ainda perfeitamente intactas e minúsculas flores brancas brotando do seu chão úmido. Eu dei um passo à frente e acocorando-me diante do sepulcro, senti quando lágrimas teimosas caíram, turvando minha visão da escritura gravada na rocha:

✝ Wilson Samuel Granherd Greaves 
Filho, marido e pai amado.

Para qualquer outro, aquela era apenas mais uma sepultura no jardim da morte. Para mim, contudo, era onde o meu pai repousava em seu último descanso.

Não podendo mais conter o choro amontoado na garganta, eu fechei os olhos, sentindo uma dor tão palpável quanto o chão em que pisava. Ela era vívida, cruel e impiedosa. Estava lá o tempo todo e sempre dançava de mãos dadas à saudade, ambas rodopiando numa ciranda fúnebre e sombria ao meu redor. Enquanto o baile macabro e melancólico acontecia, minha mente afundava numa espécie de vazio que eu podia sentir se apoderando de todos os meus ossos. Tudo martelava, queimava, doía.

O passar dos dias, das semanas, dos meses... nada ajudava. Nunca ficava mais fácil e eu desconfiava que jamais fosse. Sempre que fechava os olhos, esperava acordar e descobrir que tudo não passava de um pesadelo. Mas eu sabia que era real. Muito real.

Tentando me recompor, eu abri os olhos e enxuguei as lágrimas, engolindo o resto do choro. Tudo desceu como uma bola de pregos goela abaixo, mas não me importei. Estendi o braço em direção à lápide e vagarosa e silenciosamente, repousei nela as flores preferidas do meu pai: azaleias vermelhas. Meus olhos se perderam na cor brilhante da planta e eu assisti quando uma gota d'água atingiu uma das suas pétalas. Então, mais uma e outra gota a seguiram, até que uma chuva repentina caiu sobre mim.

Eu respirei fundo e me levantei, sentindo o peso das nuvens densas que encarceravam o céu da tarde. Não havia planejado uma passagem tão rápida pelo cemitério, mas não podia enfrentar a natureza. Me despedindo, fitei a lápide e dei um passo hesitante para trás antes de encarar a pior parte: virar e partir.

Chicoteada pela sensação ruim, eu atravessei o cemitério sob a chuva forte. Quando entrei no meu carro, estava totalmente molhada e aborrecida. Eu tirei minha jaqueta encharcada e a joguei no banco ao lado, caçando alguma coisa no porta-luvas para secar ao menos minhas mãos e meu rosto. Sem sucesso, me esgueirei para trás, buscando ajuda nos outros assentos, porém, não havia nada lá também. Somente quando olhei para o banco do passageiro ao meu lado foi que finalmente encontrei algo, mas definitivamente não o que estava procurando.

Por baixo da minha jaqueta ensopada, eu tive o vislumbre de um calhamaço de papel e soube o que ele era antes mesmo de levantar o jeans e encarar o desastre. Na minha pressa, não havia notado ali a presença da cópia do livro que deveria revisar e agora ela estava arruinada. As folhas estavam encharcadas e a tinta, tão borrada que eu mal podia ler o título da obra — A Dama Vermelha. O nome do autor, que eu não memorizara a tempo, estava tão indecifrável quanto. Tentando folhear o livro, vi que até a metade tudo estava danificado e impossível de ler.

Trago Seu Amor de VoltaOnde histórias criam vida. Descubra agora