• Tataravó •

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— Não! — Isa se levantou da mesa — De jeito nenhum!

Mona estava atordoada com tudo aquilo. Valquíria falava como fosse apenas um passeio no parque para ela, e Mona não duvidava que fosse assim mesmo para a pessoa mais maluca daquela história toda. 

Todas se sentaram à mesa antes e comeram as fatias de pizza e torta de morango de sobremesa, que Mona odiava, mas Ariana não rejeitou o pedaço que havia sobrado. Elas tiveram vinte minutos de uma conversa quase normal. 

Isa contou sobre o que seu pai tinha falado mais cedo, todas bufaram e reviraram os olhos em sintonia. Ela apenas concordou. Não tinha como o defender. 

Ariana mandou uma mensagem para a mãe dizendo que ficaria na casa de Cristina, uma das garotas que a seguia no colégio e não tinha certeza se esse era mesmo o nome correto, e recebeu apenas um "Tudo bem. Se cuida. Te amo" acompanhado por um coraçãozinho. Sua consciência não poderia ter pesado mais. 

 Mona se concentrava em manter tudo que comeu em seu estômago. Ela precisava acabar logo com aquilo, mas ainda não tinha certeza se não ter o bebê era a coisa certa a se fazer e se conseguiria lidar com toda a pressão da decisão, nem concluir se o manter era viável e se conseguiria seguir todos os seus sonhos sendo uma mãe adolescente. 

Por um breve momento olhou para as garotas ao redor da mesa e se perguntou se alguém sabia ou desconfiava, e percebeu o quão sensível estava só por pensar que alguma delas, talvez, pudesse fazer ou dizer algo que a ajudasse com a situação.  

Valquíria, por sua vez, disse que havia roubado o livro do feitiço que usariam da coleção de livros secretos da avó, mas que não entendia o motivo de ser tão secreto quando o feitiço era tão simples e elas precisariam invocar bruxas mortas.

E foi aí que a comoção na mesa começou.

— Você tá de brincadeira! — Ariana por um momento achou ter ouvido errado, mas se tratando de Valquíria, tudo podia ser verdade, para infelicidade dela.

— Eu nem cheguei na parte que precisamos ter os restos mortais de pelo menos uma bruxa — Valquíria mastigou um morango de sua tortinha.

— E como você espera que tenhamos restos mortais de outra bruxa?! — Isa estava de saco cheio de toda aquela coisa mórbida.

— Eu tenho a tataravó Castro. — Ela apontou para o baú pequeno.

Isa piscou lentamente algumas vezes. Ela não apenas tinha um defunto em casa, agora tinha dois, para seu desespero.

— Você tem uma pessoa morta no baú — Ariana estava tão descrente de toda a situação que, pela primeira vez, não alterou a voz ao se dirigir a Valquíria.

— Não é como se fosse um corpo decomposto. São só as cinzas da minha tataravó. 

— Ah, sim, agora melhorou bastante! — Isa alcançou a garrafa roubada da coleção de vinhos da mãe e bebeu direto do gargalo. Não costumava beber bebidas alcoólicas. Elas tinham gostos ruins e faziam sua cabeça ficar estranha, como se seus pensamentos fossem tomados por dezenas de outras vozes querendo a atenção dela, e Isa não gostava dessa sensação.  

— Vocês querem fazer isso ou não? Não tenho tempo a perder. — Valquíria estava impaciente.

— E quais são as outras coisas que você tem pra fazer além de usar bruxas mortas pra realizar um feitiço de necromancia? Fadas mortas e desidratadas para uma poção do amor? — Ariana debochou.

— Fadas não precisam estar mortas para um feitiço. E eu definitivamente não gostaria de mexer com fadas. — Valquíria sabia que elas podiam ser bastante cruéis.

— King não vale tudo isso — Mona resmungou da ponta da mesa, com os braços cruzados e semblante de quem estava contrariada. — E como você espera invocar outras bruxas mortas? Como você espera fazer isso sem que as bruxas vivas, que por acaso são das nossas famílias, descubram? 

Valquíria se levantou da cadeira de uma vez e olhou para cada uma das três garotas ao redor da mesa. Ela, sem dizer nada, caminhou até o baú que havia deixado entre a sala e a cozinha. Respirou fundo, se ajoelhou no chão e afastou os cabelos de seu rosto. Todas estavam bem atentas aos gestos dela e observaram com certa curiosidade tudo aquilo. Ela abaixou mais seu corpo até que seus lábios ficassem próximos ao cadeado em sua mão e que protegia o que havia dentro do baú. Elas viram Valquíria sussurrar palavras inaudíveis e o estalar metálico em seguida abrindo o objeto. Feitiços de proteção eram a especialidade Castro, afinal, eles precisavam esconder com maestria as coisas erradas que faziam.

— Eu tenho o passo a passo do feitiço aqui — Ela pegou o livro e caminhou até a mesa, o depositando sobre ela com um baque alto.

Todas ao redor da mesa olhavam receosas para o objeto velho com capa escura. Nenhuma encostaria nele sem ter certeza se era seguro. Valquíria bateu o pé no chão e sacudiu a cabeça. Era difícil demais para ela lidar com outras pessoas, ainda mais as que eram medrosas.

Ela voltou até o baú e se curvou sobre ele novamente. 

 — Tataravó Castro e eu vamos trazer King de volta a vida — Ela tirou de lá urna funerária enrolada em um tecido opaco preto e a apoiou embaixo do braço, como se a abraçasse. — Mas, se eu não conseguir ressuscitar King, não vou proteger ninguém quando eu for para a prisão.

Ariana não podia deixar de notar como Valquíria era persistente no que queria. Não que isso fosse uma grande qualidade quando se tratava de brincar com a morte, mas era admirável da mesma forma. 

— Eu preciso lembrar que o grande problema é invocar bruxas mortas? — Mona, no fundo, tinha esperança que poderiam desistir se pensassem bem sobre aquilo.

Isa respirou fundo e se levantou. Ela queria seu quarto, sua cama, os travesseiros fofinhos e o som da TV de fundo até que ela caísse no sono. Queria tudo isso, de preferência, sem o Azar no canto do quarto a encarando. 

Ela celebrava os solstícios e os equinócios com sua mãe, sabia um pouco sobre plantas e seus poderes, podia acender velas com um estalar de dedos e fazer poções simples para que conseguisse vencer qualquer que fosse a competição no colégio. Invocar bruxas de seu descanso eterno para um feitiço de necromancia que envolvia trazer alguém dos mortos, estava bem longe de suas capacidades. 

Ela andava de um lado para o outro e as meninas a olhavam como se fosse surgir dela alguma ideia melhor do que a de Valquíria.

— Você disse que sua avó tem uma sessão inteira de necromancia na biblioteca dela. 

— Sim — Valquíria concordou. — Mas esse é o jeito mais fácil.

— Eu nem quero pensar em qual é o mais difícil — Ariana comentou baixo.

— Algum deles não envolve invocar bruxas? — Isa perguntou.

Valquíria buscou em suas memórias tudo o que conhecia sobre necromancia, o que não era muito. 

— Bem — Ela começou —, nós não temos conhecimento e poder o suficiente para realizar qualquer feitiço complexo sem ajuda de bruxas mais experientes ou a energia delas, por isso esse é o mais viável. 

Isa sabia que deveria haver um limite de até onde estariam dispostas a ir até que precisassem desistir de tudo e só assumir a responsabilidade pelo que fizeram, e deveria haver um pacto entre elas que protegesse uma à outra para que não houvessem chantagens no futuro.

Seria apenas uma tentativa. Desse certo ou não, cada uma seguiria sua vida depois como se nunca tivessem se conhecido.

— Invocar bruxas mortas e usar a tataravô Castro, então — Isa jogou as mãos para o alto se rendendo.

Como grandes tragédias acontecem em segundos, nenhuma das duas teve tempo de evitar que a urna no braços de Valquíria escorregasse no tecido liso, fosse de encontro ao chão e abrisse no mesmo instante.  As cinzas da tataravó Castro se agitaram no ar e assentaram no chão da cozinha da casa Albani, e não houve mais nada além do completo silêncio em seguida.

Clube do AzarWhere stories live. Discover now