• Passo 2 •

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Tudo ao redor ganhou um tom mais macabro do que a noite normalmente trazia naquela parte da cidade que fazia divisa com a floresta. As velas em círculo ao redor de King tinham acabado de serem acesas por Isa. Valquíria veio em seguida, espalhando as cinzas de sua tia avó Odete ao redor do mesmo círculo formado pelas velas. King, ainda desfalecido, estava deitado no meio de barriga para cima e com os olhos fechados.

O que ele tinha sido, começava a ir embora. O cabelo castanho curto estava opaco e o rosto antes branco agora tinha olheiras arroxeadas. King era um daqueles caras padrões, que não tinham nada demais fisicamente, mas também não eram como os outros adolescentes menos felizardos que não tinham passado pela puberdade completamente. No auge de seus dezessete anos, o mais jovem Arantes era bastante feliz com suas conquistas, porém sem muito sucesso em as manter por muito tempo graças ao seu caráter questionável e a personalidade difícil.

Ninguém que se respeitassem ficaria com King por muito tempo.

Cada uma das garotas estava em um ponto diferente, de frente umas para as outras dentro do círculo. Valquíria era quem iniciaria os trabalhos. Aproveitando que agora a tataravó Castro não teria mais suas cinzas usadas no ritual, Valquíria a invocaria como a familiar que a ajudaria. Ela esperava que a tataravó não estivesse muito zangada pelas cinzas estarem agora dissolvidas em um balde com produto de limpeza.

— Quando eu der o sinal, vocês mentalizam o nome das pessoas que vocês vão invocar. -—Valquíria as olhou esperando que elas concordassem.

Isa engoliu seco e concordou. Tentava ao máximo manter seu foco no que estavam fazendo e se concentrar em seguir os passos à risca.

— Vamos lá. — Valquíria respirou fundo. — Tirem os sapatos.

Mona e Isa tiraram sem questionarem, já Ariana precisou que Valquíria fizesse um sinal para que ela andasse logo e fizesse o que estava mandando.

— Agora fechem os olhos. — Valquíria fechou os seus primeiros e foi acompanhada pelas outras meninas. — Agora se concentrem em suas respirações. Respirem e inspirem devagar.

Mona abriu um olho para espiar se todas estavam fazendo o que Valquíria falava e encontrou Ariana encarando a menina loira. Mona bateu o pé no gramado chamando atenção dela, que fez uma careta e fechou os olhos a contragosto.

Foi assim por alguns segundos. Elas escutavam os grilos, o farfalhar das árvores e escutavam as respirações umas das outras. Ariana pensou por um momento que podia escutar até a chama das velas, mas concluiu que era apenas sua imaginação. Não seria possível escutar um trepidar tão baixo.

Valquíria respirou fundo ruidosamente. Tinha alcançado o nível de relaxamento e concentração de que precisava para aquele feitiço.

— Agora se imaginem dando as mãos para as pessoas ao seu lado, fechando o círculo, mas as mãos que vocês estão segurando são as das pessoas que vocês vão invocar. — Agora a voz dela era baixa e calma.

— Eu não tenho a menor ideia de como era a minha avó. — Ariana estava de olhos abertos quando Valquíria também abriu os seus.

— Pelos Deuses, Ariana! — O tom calmo sumiu. Aquela garota só podia estar de brincadeira. — Só imagina uma mulher da forma como você acha que sua avó era.

Ariana pensou que talvez a avó dela fosse uma versão mais velha de Leona. Magra, alta e com os cabelos meio avermelhados. Era assim que ia imaginar a avó Maia e esperava que não estivesse tão longe da realidade.

Mona imaginou Emitério, seu bisavô. Conhecia o senhor negro de cabelos brancos apenas por fotos, mas ouviu de sua avó que ele tinha sempre um sorriso simpático no rosto e que hoje em dia o mundo precisava de mais pessoas bondosas como ele. Mona pensou que precisava da ajuda de um familiar que fosse uma boa pessoa para compensar a pessoa horrorosa que ela tinha se tornado ao matar King.

Isa, por sua vez, pode sentir o calor de dedos se entrelaçando aos seus no momento em que a voz em sua cabeça pronunciou o nome: Glória Albani, a irmã rebelde de sua avó que havia morrido antes de chegar aos quarenta anos. Ela sorriu, ainda de olhos fechados. Não tinha chegado a conhecer Glória, mas a imagem em sua cabeça era tão vívida como se a tivesse conhecido em uma outra vida. Mas foi uma outra mão que a surpreendeu.

A mão enrugada agarrou a mão dela e Isa abriu os olhos no mesmo instante. Primeiro viu o senhor ao seu lado a encarando, então olhou ao redor e viu todas as outras pessoas mortas entre as cúmplices vivas dela. Quase todos olhavam diretamente para Isa e ela presumiu que apenas ela os podia ver e eles sabiam disso.

Glória, empolgada, estava com o olhar vidrado no corpo de King. Já os mais velhos, tinham olhares suplicantes voltados para Isa. Ela estava vivendo um filme de terror e seu primeiro impulso foi se livrar de ambas as mãos que a seguravam, mas ela não conseguiu. Olhou assustada para Emitério e Glória, e essa, por sua vez, encolheu os ombros como se não se importasse para o desespero dela. Isa tentou mais uma vez com mais força, porém novamente foi em vão. Se chacoalhou mais uma vez, e outra vez, até que as outras garotas abrissem os olhos e vissem apenas Isa se debatendo.

— O que tá acontecendo? — Ariana gritou e não teve resposta. Ela via a menina se debatendo com as mãos fechadas no ar.

— Isa, para com isso! — Valquíria disse e nada mudou no comportamento dela. A menina Albani bem na frente dela colocaria tudo a perder se não parasse de se espernear feito uma criança.

— Valquíria, tem alguma coisa errada. — Mona estava aflita, com seu coração acelerado e lágrimas que se acumulavam nas laterais de seus olhos

— Mas que droga! — A garota loira se impulsionou para frente, para a direção de Isa, e teve seu corpo puxado para trás pelas mãos invisíveis agarradas às dela. Ela olhou para o nada que envolvia suas mãos e ficou paralisada pelo susto.

— O que tá acontecendo? — Ariana gritou ainda mais alto ao ver o que tinha acontecido a Valquíria, e ela a olhou com olhos arregalados e a boca entreaberta: Nem mesmo Valquíria sabia dizer.

-— Eles não me soltam! — Isa conseguiu dizer alguma coisa em meio ao seu desespero. — Eles não me soltam!

Mona olhou para as mãos dela – Se Isa e Valquíria estavam presas por aquela força invisível, isso significava que ela também estava. As lágrimas aumentaram e encheram os olhos dela tornando sua visão um borrão. Ela queria se encolher como uma criança, mas ao mesmo tempo não queria se mexer, pois sabia que o pânico seria maior se sentisse aquela coisa que as outras duas garotas estavam sentindo.

Ariana demorou mais tempo para entender que tinham mesmo um problema e a ficha só caiu quando escutou as copas das árvores distantes se agitarem e o som ficar mais alto conforme as árvores mais próximas eram atingidas.

Isso paralisou Isa. Na medida que os barulhos das folhas e galhos retorcendo ficavam mais altos, Isa também podia ouvir vozes sussurrando, que se tornavam mais e mais altas. Ela se encolheu quando as sentiu perto e prestes a atingir.

— Para com isso, Valquíria! -— Ariana não teve resposta. Valquíria estava paralisada mal sentido o chão abaixo de seus pés.

Uma das vozes riu e foi acompanhada pelas outras em uma sintonia macabra com ecos.

— O que foi isso? — Mona estava choramingando.

—  Você também ouviu?

— Claro que ouvimos! — Ariana respondeu.

Valquíria estava escutando tudo com um som abafado e distante. Ela sentia que se afastava do próprio corpo e que estava perdendo o controle dele. O desespero latente a fazia sentir como se não existisse oxigênio o suficiente para respirar e sua visão ficou turva. Queria agarrar seu pescoço com a garganta seca, esfregar seus olhos para que conseguisse enxergar, mas a paralisia a tornava apenas uma passageira no corpo que não reconhecia como seu mais.

Um zumbido estático preencheu seus ouvidos e tudo ficou ainda mais distante, até que desaparecesse por completo.

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⏰ Last updated: Nov 19, 2021 ⏰

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