O Entregador de Sonhos - Por sancotta

81 9 42
                                    

Classificação: 12+

O Entregador de Sonhos

sancotta

— Seis e vinte seis... Seis e vinte e seis. Acorde. Seus e vinte e sete. Seis e vinte e sete. Seis e vinte e set--

— Desativar alarme.

Ari esfregou os olhos, ainda dominado pela força do sono, e já com o coração acelerado pela irritação. Seu tom saiu mais rude do que o permitido, e logo se tratou de desculpar-se para a máquina, não queria ter que responder um interrogatório por mau comportamento mais uma vez naquela semana.

— Hoje é um maravilhoso dia para ser você! Como o universo é incrível para nos proporcionar a dádiva da vida, nos oferecendo cada vez mais motivos para agradecermos a felicidade em existir, não é mesmo?

Essas palavras ecoaram na mente do rapaz de olhos sem brilho, como se seu cérebro tivesse dificuldade em sintetizar os significados desse discurso.

— Preparado para mais um dia incrível de trabalho?

A voz doce e gentil finalmente se silenciou, aguardando a resposta. Ele não queria se dar ao trabalho de responder à máquina, mas ele sabia que se demorasse um segundo a mais, as coisas não seriam nada agradáveis.

— Sim.

— Percebo um certo desânimo hoje, meu jovem. Você é maravilhoso! O que lhe aflige?

— Não há nada. – Ele mentiu. Qualquer um perceberia a mentira escancarada em seu rosto pálido e sem graça, e ele agradeceu por ter como companhia apenas a máquina dona da voz suave, incapaz de ler expressões— Só estou com um pouco de sono, ainda.

—Tome um café! Veja como o dia está lindo!

A caneca com o líquido quente chamou a atenção dele, e ele nem se deu ao trabalho de tentar entender o momento em a bebida surgiu ali. Esforçando-se para parecer o mais animado possível, entrelaçou os dedos na caneca com um sorriso desenhado e bebericou um gole da bebida. Muito açúcar! Horrível!

— Está bom?

— Uma maravilha! — Sua voz saiu mais aguda e estridente do que ele próprio gostaria.

Os únicos espectros de cores naquele mórbido ambiente eram os tons rosa e azul claros da máquina flutuante, em um formato oval e sem membros, e o amarelo cintilante quase brilhante do uniforme do rapaz. As árvores ali não tinham vida, não havia folhas em seus galhos e seus corpos ressecados davam a estranha sensação de que se transformariam em cinzas com um simples tocar. A grama, cinza e sem vida, nem se movia com a brisa fraca que cortava o ar, e as paredes de pedra com suas rachaduras mostrava que há muito não habitava vida em seus interiores.

*** 

O céu, como sempre, tinha o mesmo cinza opaco. Não de nuvens em um dia chuvoso, era como se um manto cinzento e sem movimento separasse chão de céu. Não havia pássaros voando, nem cantando, nem insetos — nem nada dessas coisas que indicassem qualquer vestígio de existir vida.

O único som era respiração lenta do rapaz de roupa amarela.

Seu trabalho era o mesmo de todos os dias. Procurar por sonhos, catar os sonhos, e entregá-los para as pessoas que o encomendaram. Todos tinham direito de encomendar sonhos, mas pelo preço de 50 Dimas, pouquíssimas pessoas tinham a condição para tal. Os moradores das Torres com certeza eram mais do que capazes de encomendar quantos sonhos desejassem ter, quantas vezes por dia quisessem, mas a maioria das pessoas, os Ordinários, mal conseguem juntar metade desse valor durante toda uma vida. Isso significava que nem sempre haveria sonhos encomendados para procurar, mas, naquele dia, três sonhos estavam anotados em sua prancheta.

Projeto W.R.C - Coletânea de Contos Sci-Fi e DivulgaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora