Marfim - Por Isobel-Borges

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Classificação : 16+

AVISO DE GATILHO : perda de alguém que ama, solidão, tristeza.

Marfim

Isobel-Borges

Penteio meu cabelo pela terceira vez na manhã. Hoje ele está muito rebelde, mais eletrizado que o normal. De uma pequena base quadrada e verde, um holograma azulado mostra uma foto da minha avó, em sua juventude. Como os cabelos daquela época eram diferentes do nosso, tão lisos e sem nenhum friss. Em 2100, quanto mais seus cabelos estão frisados, mais são modernos e atuais, afinal, todos sabem que são os elétrons soltos nos fios que o deixam "arrepiados", como os antigos diziam, e isso é muito a cara da modernidade.

Se antes, minha avó lutava para acabar com o friss, hoje, eu luto para deixá-los o mais em pé possível.

– Um bom dia de trabalho pra nós, vovó. – Dou um beijo na ponta dos meus dedos e encosto no holograma.

Sinto falta dela. Faz dois anos que ela morreu de câncer. Infelizmente, em 2100, inventaram a solução para robôs "mais humanos", com movimentos quase perfeitos bem distante dos mecanizados, mas se esqueceram de tornar mais humano o acesso a cura das doenças.

Pego minha bag e verifico se todas as minhas ferramentas de trabalho estão nela. Notebook... Ok! Planificador de hologramas... Ok! Canetas aereográficas... Ok! Sinalizador de Metas... Ok! Marmita... Oh não, esqueci de preparar meu almoço! Droga, vou ter que passar na conveniência antes de ir para o trabalho. Minimizo a bag e a coloco no bolso traseiro do meu macacão.

Tranco meu apartamento. Tomo o primeiro duto de tráfego, no andar debaixo, e observo a paisagem esverdeada da cidade, devido os vidros do duto. Quando eu nasci eles já existiam então eu nunca soube o que é estar lá fora, de verdade. O ar tóxico, devido os anos de emissões poluentes e desmatamentos globais, impossibilitam a qualquer um de andar fora dos dutos. Os ares e as ruas de São Paulo são tomadas por esses "canos" verdes, os veículos foram extintos, por motivos óbvios, e hoje todos andam por eles, a pé. Ouvi dizer que na França criaram um duto de tráfego movido a ar, em que você é levado de um lado para o outro em instantes, mas para essa tecnologia chegar, no Brasil, deve levar mais um século.

Atrás dos dutos, observo os grandes prédios espelhados. Eles foram revestidos com duplemolds, material híbrido que altera seu formato de dia, se assemelhando a um espelho de forma a refletir os raios de Sol e o calor, e de noite, perdendo o reflexo e se tornando negro, para dificultar a variação térmica dentro da estrutura. Bom, com a destruição de quase toda a "natureza" e os grandes níveis de poluição, o planeta reagiu com catástrofes, perda de quase toda a camada de ozônio e o esgotamento da água doce. O que nós pudemos fazer foi se adaptar a essa realidade.

Mas eu me preocupo com quem não pode morar aqui. Mais de 70% da população do país foi dizimada com a destruição, os mais ricos se aglomeraram na cidade futurística de São Paulo, adaptada para que sobrevivam, já os pobres, habitam cidades que margeiam a capital ou o litoral do país. Foi minha avó que me trouxe para cá, quando eu ainda era criança. Se naquela época eu soubesse que as pessoas que não moram aqui passam dificuldades, não aceitaria ter vindo, ficaria e os ajudaria. Mas se eu sair agora para fazer isso, tenho certeza de que morrerei, pois não fui acostumada com a vida lá fora. Felizmente minhas doações em dinheiro vão aonde não posso ir.

Meus pensamentos acabam me distraindo e eu mal percebo que cheguei à conveniência. As portas automáticas abrem e ganho o espaço pequeno da loja. Algumas outras pessoas esperam ser atendidas pelos atendentes robôs. Me acomodo na fila atrás de um rapaz. Ele veste o mesmo macacão alaranjado que eu, com o símbolo da Empresa de Marketing Genovi. Talvez podemos ser colegas de setores, ou talvez não. Na criação de hologramas para lojas de roupas, somos poucos, e eu não me lembro de tê-lo visto lá alguma vez.

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