II - Vie

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1604 França - Reims

— O quanto você me ama? — perguntava Vie. Aquela era sua pergunta favorita, mas o que mais gostava era da resposta que vinha logo em seguida.

— Eu te amo mais que ontem, menos que amanhã. E será assim até os nossos últimos dias nesse mundo — respondia sempre com aquela voix douce que fazia com que Vie sentisse vontade de beijar-lhe até o fim dos tempos.

Ela encarava o simples anel de compromisso no dedo enquanto permanecia deitada na grama. Com a cabeça apoiada no colo dele, ergueu a mão para a noite estrelada e por um momento, o anel parecia brilhar refletindo todas as estrelas com seu cintilar intenso. O sonho de se casar, enfim, estava prestes a ser realizado.

Vie não queria riquezas, muito pelo contrário, gostava da vida simples no campo que lhe fora permitido, tudo o que desejava era um homem para amar, filhos — um casal — para vê-los dar os primeiros passos, crescendo saudavelmente enquanto corriam pelos campos floridos.

Era engraçado como o havia conhecido, a jovem nem sempre teve esse mesmo sonho de casar. No início de sua adolescência, imaginava que aprimoraria as receitas de medicamentos da sua família e as levaria consigo para a cidade, onde faria grande sucesso. Mas então surgiram as obrigações, as exigências e seus pais à porta com pretendentes aos quais Vie não conseguia nem de longe imaginar uma vida próspera e feliz. Vie era sábia, por diversas vezes havia conseguido se safar de casamentos que em nenhum momento lhe despertaram o interesse. Era conhecida por seu forte posicionamento entre os familiares, e quando colocava algo na cabeça… Não havia quem o tirasse.

Mas não só isso, sua inteligência e curiosidade também foram suficientes para espantar muitos deles que alegavam que a menina era intrometida demais, pensava demais, implicante demais e acima de tudo, respondona — para tudo, tinha uma resposta na ponta da língua. Vie possuía a beleza que tanto almejavam em suas futuras esposas, mas jamais fora a submissa que tanto sonhavam que fosse, e para sua época e idade, aquilo era uma afronta.

Sua mãe conhecia bem a filha que tinha, sabia que poderiam ser qualidades a serem exploradas, sabia do seu devido potencial, mas também sabia que as chances para que acabasse em um final feliz beiravam a um final infeliz e fatídico. Certa vez, sua mãe lhe disse:

— Ser inteligente é perigoso, minha querida! Tome cuidado com o que fala, isso ainda pode lhe prejudicar muito na vida — mas Vie, obviamente, não lhe deu ouvidos. Em toda oportunidade que tinha, tentava aprender algo novo fazendo com que sua mãe arrancasse os cabelos de tanta preocupação. Mas sempre fora assim, desde que se entendia por gente.

Aos oito anos, queria ser poetisa, decidiu-se após uma convenção de arte passar pelo seu vilarejo, um deles era um poeta experiente e seus versos lhe deixavam extasiada.

Mas ela era do mundo
em que vivem as coisas mais belas
Têm o pior destino:
E Rosa viveu o que vivem as Rosas,
O espaço de uma manhã.

                                                                                            - François Malherbe

Desde então, passava horas escrevendo e montando versos, quebrando a cabeça para encontrar rimas que lhe agradasse ao entoar ao vento. Para tristeza de Vie, sua mãe não apoiava a ideia e sempre que a via com tempo livre, tentava lhe persuadir com a técnica da alfaiataria — o que detestava — ou tarefas e lições de casa.

Mais tarde, aos quinze anos, percebeu que havia limitações injustas em sua vida, homens eram privilegiados, poderiam trilhar e criar seus próprios trilhos, enquanto ela, as mulheres em geral, deveriam seguir trilhos já prontos feitos por homens que de nada as compreendia, e mais do que detestava alfaiataria, detestava o que o futuro poderia lhe reservar — a velha e fatídica vida monótona, parecida com a de seus pais, quando na verdade seu espírito era selvagem e ansiava por correr livremente de acordo com suas próprias vontades e as de mais ninguém.

Seu pai dizia:

— Quando aceitares o seu destino, tudo será mais fácil, terás um marido e uma profissão, serás feliz.

E talvez seu pai estivesse certo em parte, porque quando conheceu ele, tudo mudou. Nunca havia acreditado em almas predestinadas, amor à primeira vista, mas era exatamente como se o conhecesse de outras vidas. Estava chovendo quando o viu pela primeira vez. Quando uma pequena felina a guiara ao seu destino e aquela chuva estava tão linda que Vie sentiu vontade de sair e senti-la tocando a sua pálida pele — detestava o calor, o sol, mas a chuva… Ah, Vie amava a chuva. E aquela em especial a atraía, como um lindo chamado.

Vie! Vie, venha comigo.

E Vie foi.

E foi naquele campo florido em meio a delicadeza da chuva que tudo começou.

Que sua história desandou.
Que seu mundo desabou.

Era o começo do fim da vida de Vie e o prelúdio da vida de Lilith.

𖥸
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Quote do Capítulo II

Quote do Capítulo II

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