VII - A promessa do destino

16 2 0
                                    

França, Reims

A loja ainda estava uma completa bagunça naquela manhã — e em breve abriria pela primeira vez em Cintilha. Os pais estavam cuidando dos detalhes da mudança e deixaram Arthur encarregado dos últimos ajustes juntamente com Anelise, sua pequena e inteligente irmã caçula. A garota dispusera de uma grande responsabilidade e seus pais sempre que podiam, colocavam Anelise em seu encalço, visto que Arthur não era um fanático pela religião assim como seus pais — as palavras da Igreja para Charlotte e Joseph eram únicas e somente elas eram consideradas a verdade absoluta imaculável. 

Arthur encontrava-se atrás do balcão, organizando os tecidos em exposição da loja quando um miado chamou-lhe a atenção. Atento, ele observara a sua volta, procurando o felino quando uma pequena gatinha de pelos pretos saltara em cima do balcão de madeira envelhecida, encarando-o fixamente e em seguida desviando o olhar para os tecidos em suas mãos — um amarelo e o outro, laranja — idênticos as cores de seus grandes olhos expressivos, hipnotizando-o por alguns minutos. A gatinha então começara a dar meia volta, procurando uma posição confortável para deitar-se, aconchegando-se em retalhos de tecidos entrelaçados.

— Que folgada, você! — disparou Arthur, ainda sentado no chão, mas não conseguiu evitar de pensar o quão perigoso teria sido para a gata que ronronava suavemente em um leve cochilo se fosse sua mãe no lugar dele. Provavelmente não seria um bom destino e começaria a explicar-lhe que gatos, principalmente pretos como aquela deitada em cima do balcão, eram ligados a bruxaria e forças malignas. Baboseira, pensou Arthur, observando-a.

Por fim, após enrolar os tecidos do estoque, quando estava prestes a levantar e levá-los para dentro, a gatinha despertou de seu cochilo e começou a miar para ele, alternando entre olhar para fora da loja e para si. A gatinha saltou para o chão e ficou esperando-o dar meia volta e segui-la, não parando de miar nem por um segundo até que Arthur a obedecesse.

— Não, não, não, shhh! — O garoto olhou nervoso de um lado para o outro se certificando de que não havia ninguém por perto, pedindo silêncio, elevando o dedo indicador para a  frente dos lábios.

Então ele obedeceu, mais por medo de que sua irmã viesse lá de dentro e a visse, ou que seus pais chegassem inesperadamente na loja do que por outra coisa. Mas isso fora apenas o que disse a si mesmo, ele queria a seguir, algo muito mais além o atraia. Uma energia o chamava e seu espírito explorador atiçara dentro de si, instigando-o a ir sem pensar mais do que uma ou duas vezes.

Então Arthur  a seguiu.

Ah, Anelise ia ficar furiosa se não o encontrasse.

—★—

Ele precisava respirar, vagar um pouco, sem rumo e agradeceu mentalmente à felina. Enquanto vagava atrás da pequena, uma chuva de verão começara a cair timidamente, ficando mais forte pouco a pouco, Arthur não incomodou-se. 

Era novo naquele lugar e ainda assim, mesmo com a chuva caindo sob seu corpo, parecia que algo lhe chamava, lhe guiava — além da gatinha a sua frente.

Ela o guiara a um monte. Arthur estava maravilhado com a beleza de Cintilha, era a primeira vez que vira algo assim, o cenário era incrível, céu e terra pareciam se fundir além e não tinha uma percepção exata de onde o horizonte sumira. Ele observara ao redor, boquiaberto.

— Era isso que queria me mostrar, gatinha? — Arthur virou-se para o bichano, mas como em um piscar de olhos, ela sumira, já não estava mais consigo e por um momento, o jovem ficou atordoado, procurando-a, mas não obteve sucesso na busca pela felina e seu ar misterioso que esbanjava ao encará-lo.

Arthur seguiu em frente, para o monte adiante e não conseguia evitar de procurar a pequena bolinha de pelos pretos pelo verde do campo, mas nada se destacava além do monte à sua frente que o tentava mais e mais. Bendito espírito explorador.

Não entendia o que guiava seus pés ou o que o motivava a sair perambulando, continuar subindo, mas perambular por um lugar novo sem uma rota definida, sem um guia, um mapa ou uma bússola, é a melhor maneira de conhecer algo novo. Perdendo-se pelos limiares daquele amplo espaço aberto até não enxergar mais residências por perto. 

No entanto, subindo mais e mais aquele pequeno monte, ao chegar na ponta, a imagem que teve era de tirar o fôlego, era mágico e simplesmente… Magnífico. 

Girassóis, por todo o vale. E mesmo não conhecendo muito dali, sentia que aquele seria o seu lugar favorito, não só em Cintilha, mas em todo o mundo. O garoto aproximou-se das flores e sentiu a necessidade de explorar e correr livremente, visto que sua cidade antiga era monótona e tediosa.

O campo era lindo, a visão que aquele lugar o proporcionara era esplêndido, mas nada — nada — se comparava a visão da jovem, no alto do monte que havia acabado de descer, o observando extasiada e ela era linda, mesmo com os longos cabelos pretos encharcados com leves ondas, mesmo sob as gotículas de água embaçando sua visão.

Ele simplesmente não conseguiu conter o sorriso ao vê-la e quando deu o primeiro passo para a cumprimentar, ela virou-se e correu disparada. Arthur não entendeu bem o porquê, mas sabia que aquela não seria a última vez que a veria.

Algo em seu mais íntimo ser o dizia isso. 

Tentou alcançá-la, mas a perdeu de vista — assim como a pequena gatinha — tão rápido quanto a encontrou. 

Desistindo, decidiu voltar, encontrar novamente a sua casa. O jovem adentrou a vila vagando pelos becos memorizados, se guiando por si só — a gata desaparecera —, mas ainda assim, o rosto da jovem permanecia vívido em sua memória e isso o desnorteou tão completamente que perdeu-se por um dos becos e mesmo tendo feito o trajeto errado, demorou para notar que ainda  não conhecia aquelas passarelas. Ele olhou para trás e depois para frente, observando, percebendo seu erro. Balançou a cabeça, tentando afastar a garota de cabelos pretos de seus pensamentos e voltou, refazendo o caminho errado até encontrar o certo.

A chuva fora passageira e instantes depois, o sol já estava brilhando antes mesmo de chegar a pequena loja, estava encarregado do atendimento enquanto seus pais finalizavam a mudança. Sua irmã estava impaciente e repreendeu-o assim que apareceu em seu campo de visão.

— Ah, você chegou, finalmente! Temos uma cliente. Nossa primeira cliente!

— Desculpe, eu me… Perdi.

E lá estava ela, os cabelos ainda molhados e o rubor visível em suas bochechas. Agora de perto, era possível ver seus olhos expressivos em um verde profundo e quase transparente, hipnotizantes, a boca levemente avermelhada.

— Você de novo!

Como um imã que a trazia para si.

A alma que te habita Where stories live. Discover now