IX - Os limites que me assolam

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França, Reims - 2001

Ben estava sozinho, por conta própria. Era a primeira vez desde que se tornara ceifador que fora mandado sem companhia, sem tutoria e mesmo que tenha memorizado cada lei, cada ação que deveria executar, o ceifador iniciante não se sentia apto para tal "cargo".

Não é como se já não tivesse ceifado outras almas, posto fim a outras vidas, mas a sensação de estar por si só era sufocante, o lembrava o dia em que se lançara à morte, pondo o suposto fim a tudo. Só não imaginava que aquilo não seria um ponto final, e isso o frustrava mais do que gostava de admitir.

Agora, naquele momento, as palavras de Lilith vinham à tona em sua cabeça.

"Não se apegue aos mortais, eles são uma perda de tempo."

"Saber suas histórias o fará sentir pena de almas que já não tem mais um propósito na terra."

"Evite contato, lhe poupará energia e tempo, além das lágrimas que provavelmente você derramará, sua sensibilidade ainda lhe levará a ruína."

E Lilith estava certa em tudo, Ben sempre foi sensível demais, seus sentimentos sempre foram mais intensos, e embora isso o fizesse sentir a necessidade de expressá-los, também foi aquilo que o levou a seu atual estado.

O ceifador caminhava pelas ruas analisando indícios de mudança na tonalidade das pulseiras ao seu redor. Ceifou uma, duas, três, vinte almas, seguindo os conselhos que Alfred julgava cruéis demais até mesmo para "anges de la mort", embora soubesse que Lilith tinha razão em cada uma delas.

"Se apegar as almas é o caminho mais rápido para a inexistência", disse uma vez refutando o argumento de Alfred de que todos possuíam uma história, mesmo que dolorosa, para ser contada. Ben estava perdido em meio a tais pensamentos quando uma jovem cruzou seu caminho com um sorriso no rosto e uma pasta em sua mão e seria uma bela visão — uma bela garota sorridente com cachos ruivos saindo para mais um dia de trabalho —, se não fosse pela pulseira em seu pulso com uma leve alteração na tonalidade vermelha.

Instantaneamente, virou-se em sua direção observando o caminho que seguia, parando em frente a um prédio corporativo. Ela sacou da sua pasta um crachá de acesso, pressionando-o na catraca que automaticamente libera a passagem, adentrando o elevador logo em seguida e Ben não deveria pensar isso, mas era muito vantajoso ser um espectro, não precisava de chaves ou portas. Mas estava curioso — e não deveria estar, deveria lembrar das palavras de Lilith — sobre o que exatamente levaria a menina à morte, ao fim do trilho. 

Era curioso que Lilith soubesse de cada história por trás das almas que ceifava, mas Ben sabia que não tinha a mesma predisposição de fingir ser leigo aos acontecimentos trágicos, que não tinha sangue frio como sua tutora e que seus traços humanos ainda eram visíveis o suficiente para transparecer em suas ações. 

 — Alice — chamou uma voz vinda de suas costas —, o que faz aqui? — a jovem virou-se, indo de encontro ao diretor administrativo.

— Como? Eu vim trazer a apresentação do projeto que havíamos combinado na reunião. Pierre não entrou em contato?

O homem a encarou como se estivesse falando outro idioma e Alice se sentiu extremamente perdida ao ser encarada por aquele olhar.

— Acho que houve um equívoco de sua parte, Sthefan Pierre entrou em contato sim, inclusive acabei de sair de sua apresentação do projeto, que foi simplesmente excelente. Demos o projeto a ele.

— Sthefan apresentou um projeto? — Alice deu uma pequena risadinha como se fosse uma piada, mas o administrador permaneceu sério demais. Seu sorriso então sumiu do rosto ao ver Pierre logo atrás sorrindo e apertando a mão do diretor principal quando seus olhares se cruzaram.

— Sthefan… O que está acontecendo? Que projeto você apresentou sozinho? — perguntou a jovem indo de encontro ao seu suposto assistente. Ele ergueu o queixo e sussurrou algo no ouvido do diretor que a encarou com repulsa.

O ceifador entendeu então o que se passava ali, sua visão ficou turva ao relembrar os momentos que antecederam a sua morte. Queria poder chorar, puxar a garota dali e evitar que ela vivesse tudo o que passou, mas ela já estava correndo para longe dali, em direção ao elevador que acabara de chegar, apertando o botão que a levaria para o andar mais alto. Correndo, sem raciocinar para seu fim. 

Ben não conseguiu ceifá-la. Alguém tão idêntico a ele. 

— Não desista! — sussurrou ao vento para que chegasse a Alice, o bracelete brilhando diferentemente do comum — a luz dourada, ao invés do branco celestial. O vento soprou seus cachos e ela instantaneamente parou, repensando e sentindo as palavras em seu coração. Sua força e vontade de viver retornando a si. Ela respirou fundo, se afastou da beirada do prédio e simplesmente desabou no chão, chorando por longos minutos.

Enfim, enxugou as lágrimas com a costa das mãos e levantou-se. Apertou o botão do elevador, térreo.

Entendeu então que havia falhado em sua missão. A pulseira voltara ao carmesim.

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⏰ Last updated: Jul 22, 2023 ⏰

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