IV - A Instituição de Ceifadores Anônimos

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Vaticano - 2001

Lilith compara seu trabalho a de um servidor público sem remuneração. Dizem que ao se tornar um ceifador, você está limpando sua própria alma dos rancores de uma vida passada sofrida, ocasionando em um possível aprendizado e consequentemente, amadurecimento para uma futura nova vida, mas ela o chama de escravidão.

A ceifadora acha engraçado que eles pensem que todos querem renascer — e talvez a maioria queira —, mas Lilith não quer. Não, tem objetivos melhores e acredita que isso seja um simples papo furado das autoridades de cima. Não quer desperdiçar a chance de uma prestação de contas significativa e só assim, acredita que poderia, enfim, evoluir. Mas isso não existe, é apenas uma mera forma de manter todos em ordem para que não atrapalhem a preciosa linha temporária de seja lá o responsável por tudo aquilo — deuses, demônios, não ligava muito para quem ou o que quer que fosse.

A vida é um sopro, dizem. E não é mentira, a sua foi muito menos que um suspiro. Não considera seu estado atual uma vida, não está viva para isso, é apenas um espectro moldado de acordo com a necessidade de um ceifador de almas.

Agora Lilith se encontra no Vaticano, um dos pontos de reunião, conhecido entre os ceifadores como picos de energia. Tais picos de energia possibilitam que consigam se reunir sem que altere a energia ambiente — pessoas normais ou sensíveis demais, por mais que transitem entre o local, não sentirão a presença de tais seres. Não haverá desequilíbrio entre uma camada do mundo e o véu do outro, mesmo que muitos deles estejam presentes. São graças a esses picos de energia que possibilitam que ceifadores consigam se reunir em uma dimensão paralela idêntica a realidade assim que atravessam o arco da igreja, sem interferências mundanas. Tal acontecimento é chamado de non habetur locus. Ou maledito, como Lilith gosta de chamar.

Muitos rancores para um lugar só.

Naquele momento, Lilith aguarda a ilustre presença de Mercury — conhecido entre os humanos popularmente pelo nome de Mercúrio, ou Hermes. Mercury é o responsável por trazer mensagens dos comandantes acima, os atualizando e designando tarefas, especificando as áreas em que irão cobrir. Lilith já cobriu diversas áreas — incontáveis para falar a verdade —, mas havia uma a qual ela nunca mais retornara, e com razão. Não que nunca tivesse sido designada para a área, já fora antes, mas seus métodos intimidadores sempre funcionaram, possibilitando-a que trocasse sem grande esforço. Era ele…

Onde tudo começou e acabou;
O local de sua morte.
De traição.

Lembranças as quais não desejava retornar.

Mas infelizmente, nem sempre é possível fugir do destino.

Agora Lilith se encontra apoiada em uma pilastra com braços e pernas cruzadas com Alfred e Ben ao seu lado. Os ceifadores formam uma passarela para recepcionar Mercury enquanto aparece subitamente pelo portal, adentrando a igreja e sendo cumprimentado por todos. No entanto, Lilith não se importa nem um pouco e trata toda a situação com desdém, se posicionando em cantos, sumindo as sombras com o auxílio de suas roupas pretas.

Já sabe de cabeça o discurso anual do mensageiro — se precisasse, poderia substituí-lo facilmente — e estava farta. Afinal, são séculos de experiência. Era sempre a mesma coisa, a mesma ladainha, boas vindas seguidas de designações e sermões. Mercury continua caminhando pelo tapete vermelho, em direção ao altar, vira de frente para todos, ajusta as vestes, pigarreia e  então inicia seu pequeno discurso orgulhosamente.

—★—

Mercury trata tudo como se fossem uma família. Finaliza seu discurso com todos o aplaudindo e ovacionando, eles o veem como um guia espiritual em meio ao caos de todo o resto. No entanto, tudo o que Lilith mais quer é sair daquele lugar. Mercury para si significa mais um carcereiro que a vigia constantemente.

Ela então se desencosta da pilastra e marcha com passos pesados rumo à saída, Alfred e Ben logo atrás, mas é impedida pelo mensageiro que em um instante, paira a sua frente.

— Temos assuntos a tratar, Lilith — diz Mercury, desdenhando do nome que adotara para si. Nunca o aprovou e por anos ousou chamá-la por Vie, mas acabou desistindo por sempre ser totalmente ignorado pela ceifadora.

Lilith respira fundo e acena logo em seguida para que Alfred e Ben sigam caminho e os dois respondem sutilmente com um aceno de cabeça andando a passos apressados em direção ao arco do Vaticano. Não queriam estar por perto caso a ceifadora perdesse a paciência.

— Não terminou de despejar tudo o que tinha pra falar em seu momento de fama, Mercury? — devolveu ela com o mesmo desdém.

— Vejo que está bem, a língua continua afiada como sempre.

— Que lindo! É o primeiro elogio que me faz em séculos — debocha sorrindo dramaticamente com as mãos no peito de forma teatral, dando as costas logo em seguida ao mensageiro para continuar caminhando.

— Não terminei, Lilith! — era poucas as coisas que o tiravam do sério, mas a ceifadora estava no topo da lista mais irritante. Ela sabia, óbvio, mas realmente não se importava, talvez até gostasse.

— Pois não, Majestade?

Mercury revira os olhos, mas permanece focado.

— Lilith, já se passaram mais de quatro séculos e você continua aqui ainda. Sabe que nenhum outro ceifador continuou por tanto tempo nessa Instituição e que por esse motivo, erros de sua parte é algo incabível.

— Onde exatamente você quer chegar? Mais um de seus sermões sobre que todos estão propensos a errar, menos eu?

— Estou falando de experiência, e por esse motivo espero que não erre novamente com seus aprendizes. Caso contrário, não passará em branco, é um aviso, Lilith. Erre e será responsabilizada e castigada por isso — Mercury virasse para ir de encontro ao grupo de ceifadores reunidos logo atrás, mas para por um momento, olha por cima do ombro e prossegue — Ah, e Lilith… Seu aprendiz vai para França, isso te remete a algo?

Mercury fez uma pequena pausa provocante, fitando-a nos olhos, então retomou: Ademais, até a próxima! Au revoir — acena brevemente.

Lilith o encara, observando-o se afastar desconfiada com o que exatamente o mensageiro quis insinuar. Por fim, bufa, mas não responde. Segue caminho rumo a sua designação.

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