V - A foice que está em jogo

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Vaticano 2001

Agora, com as designações em mãos, Lilith entende exatamente o que Mercury quis dizer ao citar que seu aprendiz iria para a França. Foi designado para Reims e tem a certeza de que fora proposital. Voltando a séculos medonhos, a ceifadora lembra da promessa que fizera de jamais retornar ao local e pela primeira vez em tempos, sentiu algo próximo ao medo.

Ela havia sido designada para um pequeno estado nos subúrbios da Moldávia e esta era a primeira vez que seu aprendiz iria sozinho em uma colheita — era como chamavam o ato de ceifar almas. Felizmente, não estava exatamente preocupada, Alfred era tão experiente quanto e Lilith não tinha o dom do ensinamento como ele, logo Ben estava em boas mãos e contava que o jovem novato fosse um bom aprendiz tanto quanto seu tutor um dia fora. Mas também sabia que Ben era um jovem extremamente curioso e que facilmente poderia lhe acarretar problemas e essa pequena parte a deixava ansiosa. Ben a lembrava de si mesma em outros tempos.

Ansiosa pelo que poderia ser seu castigo caso algo saísse dos trilhos.

Naquele momento, Lilith e Alfred se encontravam em frente ao portal que havia conjurado no pico da igreja para enfim, despacharem Ben para sua missão. Não gostava de admitir, mas só de lembrar o nome do local onde ficava sua pequena vila, a ceifadora estremecia.

— Tudo certo? — pergunta Alfred enquanto as mãos de Lilith dançam de maneira sincronizada, os braceletes dourados saindo faíscas brancas reluzentes, formando símbolos e coordenadas para o portal.

— Está quase pronto — por fim, Lilith suspira fundo ao olhar além das imagens retorcidas como o local mudara em séculos. Não é mais um local composto de pequenas vilas simples com seu povo mais simples ainda, mas sim com construções e pensando agora consigo, era óbvio que Reims mudaria. O local está diferente, mas os sentimentos de Lilith em relação a ele permanecem os mesmos, intactos — Está feito! — finaliza ao dar um passo para trás, juntando-se a Alfred e Ben, que se encontrava inquieto e nervoso.

— Está na hora — Alfred diz com sua voz suave, a calmaria em pessoa, apoiando a mão no ombro de Ben, demonstrando apoio e encorajamento, enquanto Lilith permanecia estática, encarando além do portal, com os braços cruzados, tensa.

— Vê se não dá um jeito de estragar tudo — diz a ceifadora desviando o olhar do portal, os longos cabelos pretos sendo bagunçados pelo vento da noite gélido, os olhos azuis acinzentados semi abertos encarando-o seriamente — É a minha foice que está em jogo.

Foice, é como os ceifadores se referem quando estão em observação por aqueles acima deles.

Traduzindo para a língua humana, é como se fosse: 

É a minha garganta que está em jogo.

Ben assente, dando um passo a frente em direção ao portal. Olha por cima do ombro, encarando os olhos gentis de Alfred que acena com a cabeça em apoio e em seguida para Lilith, com os olhos tão obscuros que não refletem luz, sua feição continua séria, não demonstrando sentimento algum. Então observa novamente  as faíscas brancas reluzentes a sua frente, passa o braço através do arco, respirando fundo e dando impulso para adentrar, dessa vez, com todo o seu corpo.

E então o aprendiz está ali, em Reims.

—★—

— Como assim, sua foice que está em jogo? — Alfred pergunta assim que o portal se fecha, levando Ben consigo.

Lilith respira fundo, acalmando-se e por fim responde:

— Foi o que Mercury disse, se Ben de alguma forma falhar em sua primeira missão oficial... Bom — ela faz uma pausa, dá um sorriso que não chega aos olhos, sem vida e por fim, continua — Serei eu aquela a ser castigada. Aparentemente, não posso mais me dar ao luxo de poder errar. Nem vocês.

A ceifadora caminha até a ponta da igreja, saltando até o chão como se estivesse pulando de uma simples calçada. Alfred a segue, saltando logo em seguida.

— Pretendia me informar? Poderíamos ter alertado Ben para que ficasse ciente de focar somente em sua missão.

— Pra quê? — Lilith para e o encara por fim — Não iria mudar nada, se ele tiver que errar, tenho certeza que nada mudará, afinal como o “Mercury” diz, está tudo traçado nas linhas do destino — sua voz agora sai calma, mas é impossível não notar a amargura, o deboche por trás de suas falas. Ela volta a caminhar e Alfred a segue, igualando seus passos lado a lado.

— Pode ser, mas quem sabe?

E então aquela dúvida paira no ar, em meio ao silêncio daquele céu estrelado que já prometera tanto a ela e agora, naquele momento, poderia significar tudo, e ao mesmo tempo, nada. 

Então Lilith decidiu que continuaria esperando. 
Esperaria para ver no que aquilo daria.
 
Já havia esperado tanto por tanto tempo.
Um pouco mais não seria novidade.

Enfim, o tempo. 
Dono de todas as suas lamúrias, de toda a sua frustração e de todo o seu rancor.

Por quanto tempo mais esperaria, Lilith não sabia, e não sabia também até quanto tempo aguentaria.

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