1. Depois de ti

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- Fizemos tudo o que podíamos, lamento muito - disse o homem calvo de bata branca.


Estas palavras repetem-se na minha cabeça como um eco. Consigo ver-nos aos dois sentados à beira rio. O sol, o sorriso rasgado e a tua mão na minha. Já não consigo abstrair-me dos gritos de desespero à minha volta. Com a cabeça entre os meus joelhos, fecho-me sobre mim mesma. Não posso sentir, porque sentir vai matar-me.

Dizem-me que a vida tem de continuar. Que era isso que tu querias. Mas na verdade, cá em casa nenhuma de nós vive. Sobrevive.

Hoje é véspera de Natal. Estamos as quatro sentadas à mesa, nos mesmos lugares de sempre, mas o teu sítio está e estará despido de ti.

A perda tornou a Maria mais fria, distante e aguçou o seu sentido de missão. Ainda que queira desesperadamente chegar até ela, sinto-me culpada. Sacrificou a faculdade por um trabalho que odeia para que eu e a Ana possamos, pelo menos, terminar o secundário.

A jovialidade da Ana tem sido um bálsamo. Por entre altos e baixos reconheço o esforço para retomar a vida que tinha deixado suspensa. Ao fim de quase cinco meses regressou aos treinos de basquete e no último jogo foi a que mais pontuou.

A mãe emagreceu muito e deixou de cuidar de si. O cabelo que antes era orgulhosamente ruivo, hoje tem as raízes completamente brancas. Ainda que não se deixe ir abaixo à nossa frente para alimentar a ideia de que vai ficar tudo bem, ouço-a chorar (quase) todas as noites. Voltou a escrever e eu rezo que existam páginas brancas suficientes para lhe aligeirar a dor.

O silêncio torna-se mais constrangedor a cada minuto que passa. Respiro fundo e ainda que saiba o peso que as minhas palavras podem ter, coloco a voz e digo.

- Há saudades que nunca caberão no peito!

Coisas que guardei em mimWhere stories live. Discover now