5. Yin & Yang

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A vida prepara-nos para dizer adeus aos nossos avós. Prepara-nos também, ainda que nunca totalmente, para a partida dos nossos pais. O que a vida não nos ensina é a aceitar que uma irmã possa desaparecer de hoje para amanhã, porque desafia a ordem natural das coisas.
Eu e a Francisca partilhamos o mesmo útero por quase oito meses. Eu nasci primeiro e por isso sou, tecnicamente, a mais velha. Temos personalidades e formas de estar na vida distintas. Ela é calma, ponderada, meticulosa e introvertida quanto baste. Eu sou o oposto. Foi esta dualidade que sempre nos deu o equilíbrio perfeito. Como o yin e o yang. Sem ela, toda eu sou caos.
Pergunto-me muitas vezes se podia ter evitado que o carro lhe batesse se estivesse com ela naquele dia. Culpo-me por ter ficado em casa, mas culpo-me ainda mais por não ser capaz de encontrar o sacana que a deixou para morrer.
Já se passaram seis meses desde o fatídico dia. Tudo o que o médico nos diz é que a Francisca está estável e que existe uma ínfima possibilidade de ela nos ouvir. Ontem falei-lhe da faculdade e dos dramas amorosos da nossa amiga Rita.
Aprendi a rezar no dia do acidente e é desde então que peço ajuda a um ser superior todas as noites. Hoje sonhei com a minha irmã. O quarto e a jarra de flores que levei no domingo eram os mesmos. Ela estava sentada com a bata aberta nas costas, o cabelo desgrenhado e cheia de vida. Entre uma colherada e outra de gelatina de morango, ria daquilo que eu, sentada no cadeirão de sempre, lhe contava. Tornou-se ainda mais autêntico quando a Francisca me disse por entre gargalhadas: "a vida amorosa da Rita parece um filme de terror dos rascas!".
Nesse mesmo dia, ela acordou.

Coisas que guardei em mimDonde viven las historias. Descúbrelo ahora