6. Re(nascida)

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O nosso casamento mudou quando o Guilherme nasceu. O Pedro tornou-se uma pessoa austera, triste e arranjava todos os dias um motivo diferente para discutir comigo. Começou a beber para além da conta e chegava a casa, periodicamente, bêbado. Era nessas alturas que as discussões subiam de tom, até ao dia em que me bateu pela primeira vez. Seguiu-se o arrependimento típico de um cobarde e eu segui o padrão de todas as vítimas, encobri-o. Acreditei que ele podia mudar.
Quando sai de casa a meio da noite com o Guilherme ao colo, sabia que tinha batido no fundo do poço. Se ficasse ia acabar por ser mais um número nas estatísticas de vítimas mortais por violência doméstica; se o deixasse sabia que ele não ia descansar enquanto não nos encontrasse. Com a ajuda do meu padrasto, conseguimos desaparecer sem deixar rasto. Utilizava dinheiro ao invés de mobilizar a conta, abriguei-me com parentes afastados com os quais o Pedro nunca teve contacto e ligava para a minha mãe, semanalmente, a partir de um telemóvel com cartão pré-pago. Paralelamente, comecei a ter aulas de defesa pessoal e aprendi, a muito custo, que era mais forte do que aquilo que eu mesma pensava.
O nosso reencontro tardou, mas finalmente chegou. Tudo o que eu queria era encerrar este capítulo e retomar a vida sem ter de olhar, constantemente, por cima do ombro. A ideia de termos uma conversa civilizada caiu por terra assim que o vi. Avançou para mim como antes fazia. Os olhos vermelhos e cheios de raiva. Os punhos cerrados e prontos para me desferir o primeiro golpe. Ficou surpreendido quando me esquivei com destreza. Tentou uma e outra vez, ainda que sem sucesso. O meu sorriso vitorioso deixou-o fora de si. Saco de pancada nunca mais, disse eu por fim.

Coisas que guardei em mimWhere stories live. Discover now