Prólogo - "Embarque"

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Se algum dia alguém iniciar uma conversa com você sobre a Teoria do Caos, fuja no mesmo momento

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Se algum dia alguém iniciar uma conversa com você sobre a Teoria do Caos, fuja no mesmo momento.

QUATRO ANOS ANTES

27 de outubro. Noite.

Grunhidos perturbadores vinham do vagão anterior. Havia alguém lutando para escapar de um destino cruel.

Era quase meia-noite. Uma tempestade cercou a região que interligava o pequeno condado de Barrymore e a movimentada capital, Morrowborn. Por conta disso, grande parte das estradas estavam bloqueadas e os únicos veículos capazes de transitar eram as locomotivas na ferrovia — naquela noite, somente uma locomotiva cruzava essa rota: a de número nove.

O trem parou no meio dos trilhos perto das onze e cinquenta da noite, devido a um motivo desconhecido. No vagão principal, os cochichos alegres e as conversas paralelas impediram que os viajantes se dessem conta de um acontecimento trágico atrás da porta principal. Foi muito de repente. Mas os grunhidos causaram incômodo, chamaram a atenção. E incomodaram porque ninguém contava com aquilo. Naturalmente, porque os passageiros queriam que suas vidas fossem melhores quando chegassem ao seu destino. Não estavam dispostos a lembrar daquela viagem cansativa como um fardo. Mas lembrariam.

Mais de dez pares de olhos foram arrastados até a porta no fim do corredor, que estava sendo empurrada. Depois de ter sido aberta, uma criança foi jogada no meio da multidão. Atrás dela estava um sujeito alto que vestia um tecido sobre o rosto. A vítima implorava por ajuda como se realmente precisasse dela, numa sensação parecida com o fato de estar preso à lâmina da guilhotina e gritar aos telespectadores para que façam alguma coisa, mesmo quando se sabe que ninguém fará nada.

Eles somente assistiram.

A boca da pequena criança foi coberta por uma mão suja com sangue, e seu corpo foi arrastado para trás novamente, levado para a passagem de onde havia saído. As árvores lá fora mexiam-se com a ventania e a luz da lua trazia ansiedade àqueles que preferiam o escuro. Ninguém sabia dizer o que estava acontecendo, embora imaginassem que aquilo não devesse pertencer ao roteiro de viagem.

Um tempo depois — cerca de cinco minutos —, os passageiros voltaram a ouvir os gemidos daquela criança. Correram até a janela e perceberam a mesma pessoa não identificada carregando a vítima amordaçada até a beirada dos trilhos.

Algumas mulheres ainda carregavam sua taça de champagne em mãos. Uma canção tocava no rádio presente naquele vagão — Eleanor Rigby, famosa na época. Esquecendo-se de suas vidas medíocres por um instante, os passageiros presenciaram a criança sendo empurrada até a beirada dos trilhos, onde um abismo profundo a aguardava. Seus pés, hesitantes, fizeram um amontoado de pedregulhos deslizar sobre as rochas.

Tentou gritar, mas só o que saía de sua boca eram grunhidos de terror. Os olhos dela — se ao menos alguém pudesse vê-los — eram tão felizes, cintilantes, que qualquer um que os visse nunca pensaria que estava sentindo tanto medo. Mas estava. Era o medo, é claro! Aquela pequena alma infantil estava derretendo numa angústia que não foi criada por si própria, mas por quem fez aquilo. E então a criança caiu.

As mãos ásperas procuraram agarrar-se à beirada íngreme do abismo, embora de nada tenha adiantado. Estava muito longe agora. Muito longe e muito fundo. Àquela altura, ninguém mais poderia resgatá-la do destino frio e sombrio — de forma literal, porque não havia sequer um ponto de luz lá embaixo.

O abismo a engoliu, por fim. O grito tampouco foi ouvido depois da metade da trajetória, entre quatrocentos e quinhentos metros de profundidade. Sabe-se lá o que foi que ela enxergou enquanto continuava a cair.

Quando a trágica queda se encerrou, um bando de pássaros escuros saiu voando de dentro do buraco. Foram incomodados com aquele pedaço de carne tocando o chão, é provável. As aves passaram perto das janelas do trem, embora não tenham chegado a tocá-las.

E ali, atrás daqueles vidros frágeis que dividiam os passageiros da visão de um abismo mortal, existia dor. Além disso, devia existir raiva, ódio e tristeza. Mas não houve protesto, sequer.

"Foi uma pena ela ter caído". Essa seria a única frase sussurrada depois que aquela noite chegasse ao fim. Nada além disso e nada além do silêncio absoluto. Permaneceram calados todos os viajantes. Inertes em seus assentos ou cabines, com as bocas costuradas pelo aconchego de não estarem no lugar da vítima.

A tempestade seguiu violenta, o que tornava impróprio que aquele trem continuasse parado ao lado de um abismo. Assim, o enorme farol na frente da locomotiva voltou a ser acionado, a alavanca de engate foi puxada e a fumaça tornou a sair pelo topo do veículo. A música no rádio seguiu tocando e a champagne foi servida novamente. O trem seguiu viagem.

 O trem seguiu viagem

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Trem para Barrymore [CONCLUÍDO]Where stories live. Discover now