Memória Enterrada

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Ayumi gostava de ter seus poderes de volta. E seu corpo. E de ter finalmente conseguido.

- Feche os olhos. - Ela disse a ele. - Para você, não vai ser diferente de dormir e acordar.

A memória que estava enterrada era dolorosa ela sabia. Às vezes, algumas pessoas não tinham consciência do próprio passado porque sua mente o escondia delas como uma ameaça. Quando Asmus abrisse os olhos, ele não saberia nunca mais qual foi a memória, porque ela já teria feito sua refeição.

Ela havia dito a ele antes: todas memórias de Shivani por apenas uma de Asmus. Essa era a diferença de uma memória traumática de um deus para a de um humano.

E Asmus aceitou. Afinal, ele não conseguia impedi-la de tocar Shivani. Essa era a fraqueza dele.

Quando Ayumi estava forte o bastante, ela conseguia trocar as ilusões por pedaços da realidade. Ela vinha modificando os pedaços que queria do mundo. Era assim que ela concedia os desejos. Era assim que se protegia do deus e era assim que ela iria sobreviver.

Ela precisava comer.

Ayumi passeou pelas memórias dele. Procurando saber onde a lacuna começava e onde seu acordo terminava.

🌙 🌙 🌙

Asmus tinha oito anos. Aramis tinha onze. Eles eram parecidos, algumas pessoas chegavam a brincar que eram gêmeos.

Eles corriam pela cidade descalços, tinham as costelas aparecendo como cachorros famintos e espertos como as artimanhas de gatos de rua.

Asmus já pensava em si mesmo como uma tragédia naquela época. Aramis já era cruel.

Isso se traduzia nos passos de Asmus, na forma que ele mancava às vezes e quando ele escondia as marcas sob o huipil branco. Asmus já se escondia atrás de sorrisos e Aramis já era egocêntrico. Eles eram como fumaça e fogo, um ardia e o outro sufocava mas eram tudo um para o outro, mesmo que doesse. Eles aprenderam com a mãe que nada podia machucar mais do que esperar alguém que não vai vir.

Era Aramis que mais sofria com a partida dela. Asmus não lembrava muito. Ela era dura com o irmão mais velho, mas adorava Asmus como o filho de ouro. Ele não conseguia entender como ela o deixou para trás mesmo assim. Eles eram duas crianças abandonadas aos pés dos deuses.

Mas isso não era tudo o que eles eram. Todos os dias os garotos se sentavam em uma esquina a beira do mar e montavam seu pequeno negócio. Era uma cidade portuária, tudo o que se podia ver era água. Era uma ilha e era mágica. As pessoas gostavam da magia e tudo era antigo e novo ao mesmo tempo. As gigantescas estátuas misteriosas que ninguém tinha conhecimento de quem havia construído ao lado das enormes construções feitas de puro cristal em todos os cantos da ilha feitas pelos maiores engenheiros.

Ali naquele fim de mundo, eles colocavam sua vida a jogo, literalmente. Os trocados das apostas eram almoço, café da manhã e jantar ou dormir de barriga vazia e rezar na frente das fontes. Eles colocavam as cartas e trapaceavam como podiam.

Isso é o que se deve saber sobre essa cidade mágica: Em Atlantis não se pode mentir.

Naquela ilha paradisíaca avançada e mágica, onde as pessoas de cabelos escuros e pele cor de oliva praticavam sua cultura e ciência melhor do que qualquer outro lugar no mundo, a honestidade era lei.

Asmus era muito sortudo, mas talvez não tanto quanto seu irmão. Aramis era um mentiroso. Não por que ele gostava, mas porque ele podia. Isso era algo que o monstro só veio a entender completamente com dezesseis anos, quando saiu da cidade e contou sua primeira mentira. Quando você pisa no solo de Atlantis, você se torna fisicamente incapaz de mentir. Sua língua se enrola e sua garganta se fecha e você se torna incapaz de pronunciar as palavras.

Preto Cinza e Tempestade - FortunataWhere stories live. Discover now