A amiga imaginária

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Meu marido, após muitas "indiretas" e conversas, conseguiu realizar o sonho dele, morar em uma casa no meio do mato. No começo eu fui contra, não queria precisar dirigir por uma hora toda vez que quisesse comprar algo ou me reunir com amigos. Mudei de ideia após começar a trabalhar online. Eu trabalhava o dia todo em casa, mas visitas indesejadas me interrompiam constantemente.

"Você nem tá trabalhando, tá no computador." "Teu trabalho é online, depois você faz."

Apesar de ficar profundamente irritada, eu nunca falava nada por odiar conflitos.

"Entre, conte a fofoca do final de semana." – Eu respondia, sorriso no rosto, mas vontade de socar a pessoa.

Como a eximia resolvedora de conflitos que sou, me mudei para o meio do mato pela minha incapacidade de dizer "não".

Meu marido comemorava como se houvesse cruzado os portões do paraíso:

"Sinta esse ar fresco, o som da floresta, esse lugar é maravilhoso."

Eu só notava os insetos infinitos e o barulho ensurdecedor da floresta a noite. Pelo menos o ar realmente era agradável.

A nossa filha, Sara, tinha cinco anos, meu marido a deixava na creche toda manhã e a trazia para casa logo depois do meio dia. Imaginava como isso funcionaria a longo prazo; quando ela fosse mais velha iria odiar a prisão diária de 2 horas em um meio de transporte do trajeto até a escola. Enfim, esse é um problema do meu futuro eu, por enquanto ela era uma criança adorável e obediente que nunca nos dava problemas.

Depois de uma semana morando ali, Sara começou a agir de um modo estranho. Eu a ouvia conversar com a janela, e quando eu entrava no quarto ela parava bruscamente e olhava para mim, sorrindo.

— Com quem você estava conversando?

— Ninguém, mãe.

Depois de um mês Sara começou a fazer perguntas estranhas.

— Mãe, eu tenho uma irmã?

— Não, você é filha única.

— Ah, é que tem uma menina igual a mim na janela do meu quarto.

— Igual a você? Isso se chama reflexo, meu amor.

— Refesso?

— Reflexo, igual em espelhos.

Peguei ela no colo e levei-a até o espelho do banheiro.

— Viu? Esse é o nosso reflexo, não somo nós duas de verdade.

— Não, mãe, menina igual no quintal, na janela.

Concluí que Sara tinha criado uma amiga imaginária.

— Uma amiga te visita todo dia na janela? Que legal, filha, mas não é a tua irmã, só uma amiga, mesmo se for bem parecida com você.

— Tá bom, mãe.

Sara abraçou-me e voltou a brincar.

Quando meu marido chegou em casa, contei sobre a amiga imaginária da nossa filha, argumentei que talvez não fosse o ideal ela crescer sem interagir com ninguém. Ele respondeu que era bobagem da minha parte, ela interagia com outras crianças na creche e isso era o bastante.

Sara falava sozinha cada vez mais. Certo dia, podia jurar que tinha visto uma criança, cabelos encaracolados iguais aos dela, sair correndo da janela assim que eu entrei no quarto.

-

Os dias eram agradáveis, passava as noites lendo livros e assistindo séries. Nos sábados dirigíamos até a cidade para sairmos com nossos amigos, e era interação social o suficiente para saciar minha ânsia por conversa furada até a semana seguinte.

Me preocupava um pouco com a floresta, o ambiente poderia ser perigoso para uma garota de 5 anos de idade, por isso eu ficava de olho na Sara o dia inteiro. Quando eu não podia observá-la diretamente, eu a trancava no quarto, ligava a babá eletrônica e olhava se ela estava bem a cada meia hora. Em um dia desses, tranquei-a no quarto deixando-a com um programa infantil sobre dinossauros e vacas serem melhores amigos. Nem perguntem, depois de assistir algumas centenas de programas infantis com minha filha, tenho certeza de que os roteiristas desses programas usam alucinógenos pesados antes de trabalhar.

Para a minha surpresa, após eu sentar no notebook para trabalhar, vi a minha filha correndo pelo quintal. Imediatamente abri a janela e gritei:

— Sara, como você saiu do seu quarto? Não pode ir para o quintal sem a minha permissão.

Ela fingiu que não me ouviu e saiu correndo para o meio da floresta. Entrei em desespero e vesti o tênis rapidamente para sair correndo atrás dela, quando ouvi Sara rindo no quarto. Ao destrancar a porta, ela estava lá, ainda assistindo o programa infantil.

— Sara, você saiu do quarto?

Ela fez uma expressão de descrença, como se não tivesse entendido o motivo da minha pergunta.

— Deixa pra lá, filha, se precisar de mim é só me chamar.

Não tinha como Sara ter saído do quarto, a porta e a janela estavam trancadas; muito menos voltar da floresta tão rapidamente. Eu devo ter me enganado.

Na semana seguinte, em um dia ensolarado, deixei Sara brincar no quintal, e observava-a pela janela. Se ela esboçasse sair da minha linha de vista, eu imediatamente pedia para ela voltar para perto de mim. Porém, alguns minutos depois, ao olhar para a janela, congelei com o cenário bizarro que eu enxergava. Duas Saras brincavam no quintal, a poucos metros de mim.

— Filha? Venha aqui agora mesmo. – Gritei ao me recuperar um pouco.

As duas correram em direção a mim. Porém, apenas uma delas entrou, a outra ficou parada na porta, sorrindo e olhando para mim sem piscar. Ela era idêntica à minha filha, mas não aparentava ser humana, parecia um androide tentando imitar uma criança.

— Mãe, posso entrar?

— Quem é você?

— Posso entrar? – A entidade que imitava a minha filha repetiu.

— Você é filha de alguém da vizinhança? – Perguntei, tentando racionalizar o que estava acontecendo, mesmo sabendo que uma criança de 5 anos não teria andado sozinha por quase 1km, que era a distância da nossa casa para a mais próxima.

— Filha vizinhança, posso entrar?

Bati a porta na cara da criança, e fechei todas as cortinas da casa. Ao olhar por uma janela, observei a garotinha parada encarando a porta, sem mover um músculo. Depois de um tempo, ela colocou duas mãos no chão e correu em direção à floresta, galopando como se fosse um cavalo. Fechei a última cortina e esperei anoitecer. Assim que meu marido chegou, expliquei o que havia acontecido e disse que queria ir embora daquele lugar imediatamente. Ele tentou argumentar, disse que eu estava inventando desculpas porque não queria morar ali. Vi que era inútil, ele simplesmente não acreditaria em mim. Peguei a Sara, enchi duas malas e fui para a casa da minha mãe.

Ao chegar lá, expliquei para ela o que havia acontecido. Minha mãe estranhou, mas disse que eu poderia ficar ali o quanto eu quisesse. Após jantar, liguei para o meu marido.

— Oi.

— Oi, amor, por que você tá me ligando de dentro da casa?

— Como assim? Eu tô na minha mãe.

— Não tem graça, você ficou batendo na porta e quando eu abri ficou perguntando "posso entrar, posso entrar?" sem parar, se recusando a conversar comigo, nem se dispôs a me ligar quando deixou a Sara na sua mãe.

— Escute bem o que eu tô dizendo. Saia dessa casa agora, não pegue nada, só saia.

— Do que você tá falando? Isso é estúpido. Não sei porque eu tô conversando por telefone se você tá aqui. Peraí, como você tá falando sem seg...

Ouvi sons de batida, luta e carne rasgando, juntamente com gritos e depois suspiros que abaixaram o volume cada vez mais, até tudo ficar em silêncio. Depois de alguns segundos, ouvi passos e alguém pegando o telefone do chão. Em um tom alegre e jovial, uma voz idêntica à do meu marido disse:

— Oi, amor! Chegou casa da sua mãe, batendo na porta. Posso entrar?

Lendas de outro universoWhere stories live. Discover now