O anjo

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Sempre fui muito próximo à minha irmã, Anne. Desde criança fazíamos quase tudo juntos. Brincávamos na praça, jogávamos, tínhamos os mesmos gostos para filmes e séries.

Infelizmente, tudo mudou desde aquele trágico dia.

No último ano do ensino médio, passando com um grupo de amigos na frente de um prédio em construção, nos desafiamos para ver quem chegava primeiro ao topo daquele local com mais de 10 andares. Invadimos facilmente, a única parte "segura" era o galpão com os materiais de construção, o prédio em si tinha apenas algumas placas de metal ao redor. Após pularmos as placas, começamos a escalar o local, ainda sem muitas escadas prontas. Precisávamos achar materiais empilhados ou escadas removíveis para chegarmos no andar seguinte. Quem chegasse no último andar primeiro, ganhava 100 pratas, 20 de cada um. Pode não parecer muito, mas para um adolescente sem emprego, era bastante por meia hora de escalada. Anne e a melhor amiga dela, Caroline, estavam em primeiro. Um pouco de trapaça pelo fato de que as duas eram da equipe esportiva da cidade, e o resto no máximo jogava um pouco de futebol na escola. "Foi uma péssima ideia disputar algo que exige condicionamento físico com elas" eu pensava no momento. Elas estavam quase dois andares na frente do terceiro colocado, escalavam se empurrando e dando risada, trapaceando para ver quem chegava em primeiro. Em uma dessas empurradas, Anne não mediu bem a força e empurrou Caroline com muita intensidade, que tropeçou em uma viga e caiu do oitavo andar.

Desesperados com o som horroroso da queda, descemos o mais rápido possível. Não que nossa velocidade faria alguma diferença, Caroline morreu na hora. Anne ficou parada, sem piscar, olhando para o corpo da amiga estraçalhado no chão, cabeça amassada como uma melancia e o interior espalhado por metros.

Após aquele dia, tudo mudou. Anne não conversava mais comigo. Eu tentava chamá-la para assistir algo ou ir para o shopping, qualquer programa que fazíamos direto, mas ela sempre dizia que estava cansada. Esse comportamento repetiu-se por meses, até que Anne achou algo que aparentemente confortou-a. Religião.

Ela ia para cultos duas vezes por semana, e eu escutava-a orar todas as noites. Geralmente pedia redenção pela própria alma, perdão pelos pecados cometidos.

Fiquei feliz por ela, apesar dela ainda não conversar quase nada comigo, parecia estar mais animada, o que não era difícil considerando o poço de depressão que ela ficou por um bom tempo depois da tragédia. "Um bom primeiro passo", eu pensava enquanto a via sorrir periodicamente.

Contudo, ela ficou cada dia mais estranha e distante. Dizia que Deus respondia as orações dela, e que ela conversava com um anjo todo dia.

Já na profundez da noite, comecei a prestar mais atenção nas orações dela, grudava o ouvido na parede para tentar ouvi-la melhor no quarto ao lado.

Além dos mantras habituais, parecia que havia outra voz ali, falando coisas indecifráveis. Fiquei relativamente perplexo com a estranheza da situação, mas só raciocinei que deveria ter uma explicação plausível e não pensei muito sobre isso.

Ao decorrer das próximas semanas, entretanto, a voz misteriosa que conversava com a minha irmã durante as orações dela parecia ficar cada vez mais alta. Após a repetição da situação atípica, decidi investigar.

A janela do quarto da minha irmã dava para o quintal, então eu saí e tentei observar. As cortinas cobriam a janela, portanto não era possível enxergar dentro do quarto, mas eu conseguia perceber claramente uma luz piscando, como se fosse um vagalume, por trás das cortinas. Quando a minha irmã parava de orar, a luz parava imediatamente.

Todo dia eu saía para o quintal e a mesma coisa acontecia.

Certo dia, tentei perguntar para ela sobre a luz no café da manhã.

Lendas de outro universoWhere stories live. Discover now