Perfídia

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Engraçado como o tempo funciona. Parece ontem que aquele sorriso sincero, dentes da frente saltados, provavelmente pela condição financeira deteriorada da família impossibilitando a colocação de um aparelho, cumprimentava-me na escola.

Era o aluno novo. Esperança de sucesso levou o pai a mudar-se de estado após conseguir emprego em nossa cidade. Um forasteiro, de terras desconhecidas, formato do corpo diferente, sotaque que o tornava alvo fácil.

— Oi, sou o Tiago! Adoro Berserk também! — Ele apontou para a minha camiseta, o símbolo da maldição reconhecido representava o gosto em comum.

A partir daquele dia, uma amizade surgiu. Ou melhor, o conceito distorcido pela estupidez adolescente, o que ela deveria significar. Companheirismo, empatia, solidariedade é o que amizade simboliza. Mas não. Alimentando-me da fragilidade e confiança, suguei a alma do novato fingindo simpatia, comendo o coração pulsante dele como em um ritual maia, absorvendo-o tentando fortalecer-me com tal gesto. Mostrar-se forte em um ambiente escolar significava popularidade, algo que todos com a puberdade recém atingida almejam incondicionalmente.

A facada estopim ocorreu logo na primeira semana. Andávamos juntos para a escola, e em uma distração, Tiago pisou nas fezes presentes na calçada. Ele tentou limpar, mas era impossível a retirada em sua totalidade sem uma escova, água e sabão.

— Vou pra casa trocar de tênis.

— E perder a prova da primeira aula? Você tirou quase tudo, não vai dar pra sentir cheiro nenhum se a pessoa não encostar o nariz no teu tênis.

Até hoje eu não sei o que me fez dizer aquilo. Acho que a intenção inicial era boa, pelo menos gosto de consolar-me desse modo, tentando amenizar a culpa que me corrói. Mas assim que estávamos na sala, Flávia, a garota mais linda do ambiente, sonho de consumo até dos marmanjões do terceiro ano que já vinham de moto para a escola, reparou no odor incomum.

— Tão sentindo esse cheiro?

Meu coração palpitava. Só a voz dela já revirava o meu estômago de paixão, uma chance de interagir com ela então, respondendo diretamente a uma frase saída daqueles lábios? Oportunidade imperdível, talvez uma chance que ela me notasse.

— Tá vindo do Tiago! — Abri a boca traiçoeiramente, jogando o meu protegido aos lobos.

O professor checou, e pediu que ele fosse até o banheiro lavar o tênis. O momento simples, que um adulto riria como um acidente de percurso coloquial, foi o estopim para o apelido daquele garoto que ainda era desconhecido:

"Merda ambulante".

O apelido grudou como chiclete, afinal a maioria ainda nem sabia o nome do novato, e era mais fácil papaguear o vocativo utilizado por outros. Apesar da minha traição e do meu envolvimento com o pronome cruel, Tiago ainda manteve a amizade comigo, sonhando em agarrar-se a quem quer que interagisse com ele, mesmo se tais pessoas não fossem merecedoras do seu afeto. Afinal, a solidão é a amante mais cruel, que nos deixa sozinhos com nossos pensamentos. Não vou mencionar todas as vezes em que eu utilizei deste sentimento para humilhá-lo enquanto eu me enaltecia, pularei para meses depois, ocasiões onde a minha crueldade já havia escalado de um modo irreparável.

Era uma reunião na minha casa, meus pais tinham saído para um jantar e estávamos eu, Tiago, a Flávia, e mais 3 amigos bebendo uma vodka com coca, ápice da rebeldia daqueles adolescentes estúpidos. A ideia tinha vindo de mim. Como estávamos em seis pessoas, brincar de roleta russa. Tiago protestou: "Pelamordedeus galera, não façam isso, um dos seis vai morrer." Os outros cinco adoraram a ideia, entretanto, e chamaram-no de covarde por não enfrentar o desafio. "Você pode ficar por último então, já que tá com tanto medo." Relutantemente, ele aceitou. Não era nem o caso de um suicídio, quem que queria que um dos amigos morresse em uma reunião dessas? Óbvio que ele tinha razão, mas foi afogado pela pressão social.

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