A entrada do inferno

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Parecia um sonho. Um patrocínio para ir até a Argentina investigar uma lenda famosa da região. Desde criança amo acampar, e o nosso grupo de amigos é ligado por essa paixão em comum. Sempre gastamos do próprio bolso para conhecer lugares novos; então saber que seríamos pagos para acampar, filmar e conhecer uma região onde poucas pessoas já pisaram em toda a história da humanidade (evitada até pelos indígenas próximos dali) parecia a aventura perfeita; somada ao fato de ganharmos dinheiro, e até fama dependendo do resultado das filmagens.

O documentário era sobre a "Lenda da Entrada do Inferno", que dizia que, ao anoitecer, gritos ecoavam da floresta, sem fonte aparente. Movidos pela sede de aventura, rumamos mata adentro, centenas de quilômetros longe da civilização. Sabíamos do histórico de mortes desse local, mas raciocinávamos que "morre gente escalando o Everest também, qualquer lugar inóspito tem seus perigos, devem ter morrido por não se cuidar na floresta". Pensávamos que haveria uma explicação plausível para os gritos que se iniciam todas as noites, como uma tribo indígena, algum animal desconhecido (pássaros, por exemplo, gritam e falam, tem o caso do corvo que gritava "me ajude" de cima das árvores toda vez que via um humano) ou até algo relacionado a flora (algum alucinógeno exalado por plantas, ou simplesmente o modo que o vento batia em certas folhas). As nossas teorias ocuparam dezenas de horas dos diálogos anteriores à viagem, até fizemos uma aposta para ver quem acertava qual era a fonte dos gritos inexplicáveis.

Um sonho na imagem formada por nossa mente, mas a realidade, essa palavra tão cruel de que a maioria das pessoas tenta fugir, sempre puxa o tapete dos pés do idealizador. Não faltaram sinais de que entraríamos em um pesadelo surreal e bizarro, os avisos cresciam à medida que nos aproximávamos do destino. Mas admitir que estamos errados? Nunca é fácil, não é? Mesmo com todos gritando que deveríamos voltar.

Na primeira semana, gritos leves nos rodearam. Saíamos e tentávamos investigar, mas não encontrávamos nada. O som ambiente era constante mas inalcançável. A origem permanecia um mistério, não importa o quanto procurássemos. Caminhamos por 5 madrugadas intermitentemente, ao amanhecer, os gritos desapareciam e íamos dormir, decepcionados. Não achamos nenhuma explicação que pudesse racionalizar o que acontecia naquela floresta.

A partir da segunda semana, os gritos intensificaram-se junto com o inexplicável, e o horror. Um a um, os membros da nossa expedição enlouqueceram lentamente. Primeiro, Gabriel começou a falar coisas sem sentido. Riamos achando que ele estava tirando sarro da nossa cara, até que, em uma caminhada para pegar suprimentos, ele jogou-se da colina, enquanto sorria e balbuciava sandices. A queda não deixou brechas; ele morreu na hora, crânio aberto ao bater em uma pedra. Após esse acontecido, limitamos nossas saídas de madrugada, só saíamos da barraca se fosse necessário. Iríamos embora em breve.

Até que Fábio sumiu. Procuramos por ele nos dias subsequentes, mas além de não conseguirmos nada, mais pessoas começaram a desaparecer. Antony e Pâmela foram engolidos pela floresta. Todos entraram em suas respectivas barracas ao anoitecer, e quando amanheceu, os dois já não estavam mais ali.

Nossa esperança de que o destino deles não fosse o mesmo do Gabriel durou pouco. Antony e Pâmela foram encontrados 3 dias depois na margem do rio, quase irreconhecíveis, pele mastigada pelos peixes.

Mas o pior de todos foi o Marcel. Na mesma noite, acordamos com os gritos:

— Eu posso ver! Tudo está claro agora! Não preciso mais disso!

Ao sairmos da barraca, Marcel forçava os dedos nos olhos, tentando puxar os globos oculares para fora. O som macio dos órgãos desprendendo-se da face ecoou no silêncio da madrugada, que estranhamente não manifestava os gritos rotineiros, como se as vozes estivessem satisfeitas momentaneamente. Ele não esboçava dor com o gesto bizarro; ao contrário, sorria maniacamente, como se tivesse tido uma epifania e abraçado a felicidade absoluta. Ele lançou os dois olhos na terra e correu para o meio da escuridão completa, passos robóticos e acelerados.

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