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Não faço a menor ideia de quanto tempo estou nesse lugar. Chutaria semanas ou talvez meses, mas não tenho certeza nenhuma. Desde a última discussão que eu escutei o meu ouvido está tampado e eu não posso ouvir nada. Não posso falar ou emitir nenhum som. Não posso me mover. A única parte de meu corpo que eu sinto que está se movendo são os meus pulmões. Geralmente quando minha mente clareia eu só enxergo um clarão cegante. Hoje não aconteceu isso. Meus olhos parecem não poder se fechar nunca. Eles mantem-os abertos e lubrificados. Deve ser soro. Não sei. Mas sei que hoje não vi o clarão habitual. Enxerguei uma janela. Meu pescoço. Ele não estava mais em linha vertical. Eles devem tê-lo virado para o lado. Bom, de qualquer forma agora enxergo uma janela. Fico tão feliz em poder ver a forma de algo. Pelo o que vejo está um dia nublado. Tento me mover. Nada. É impossível.

Espero mais algum tempo antes de sentir uma vibração em meu braço esquerdo. Oh, o que será dessa vez? Estão movimentando o que parece ser uma maca com rodinhas, na qual eu estou deitada. Conforme eles me movimentam a janela sai da minha visão. Para onde estão me levando agora, Senhor?

Percebo que estou em algum tipo de maquina. Eles estão me tocando. Eu sinto isso.

Agulhas e fios nos meus braços e rosto. Pelo mínimo que posso, vejo um homem que aparenta ter uns 50 anos, com um bisturi na mão esquerda direcionando-o ao meu corpo. Droga. Ele aparentemente usa o objeto em mim, mas eu não sinto nada além de um leve incomodo no pulmão. Onde será que eles estão mexendo? No meu pulmão. Mas em que parte? Sinto um aperto e uma dor no meu... Ah não. Não podem estar mexendo lá. Eles sabem o risco que é mexer em corações sem ser profissionais nisso e sem tomar as medidas necessárias? Espero que saibam.

Passou-se algum tempo desde o que eu suponho ser, uma cirurgia. Minha maca foi levada ao mesmo quarto. Ou não. Não da pra saber exatamente. É a mesma luz cegante de antes. Moveram meu pescoço para a vertical novamente. De modo que eu olho para cima de novo. Ouço passos. Uma voz feminina falando com uma voz grossa masculina.

Voz fem.: Mas senhor, temos que acordá-la para dar comida a ela. Ela não aguentará se ficar por mais tempo com o soro. Ela está há muito tempo sem comer e qualquer organismo fraco desse jeito morre rápido. Ela está muito fraca.

Voz masc.: Susane, quem da as ordens aqui sou eu. Se ela morrer, temos que achar outro casal disposto a vender um dor filhos em troca de dinheiro. É só eu falar com eles e oferecer-lhes uma boa quantia e pronto.. Temos outro humano-teste.

Voz fem.: Mas senhor, mesmo ela sendo tecnicamente propriedade da empresa, ela não deixa de ser um ser humano...

Voz masc.: ah já chega Susane. Não iremos acordá-la até que o experimento seja completado com sucesso. Considere este assunto encerrado. Mande as enfermeiras darem um soro mais forte a ela.

Voz fem.: Sim senhor.

Os passos se afastam, mas eu sinto que uma pessoa ainda está no quarto. Ouço o que parecem ser papeis sendo remexidos. Após isso mais passos seguem para fora do quarto.

Forço-me a mexer os braços e pernas. Nada de novo. Até quando eles iram me deixar assim? Eu sinto como se minha alma não estivesse em meu corpo. Isso não é real. Não pode ser real. Por que meus pais me venderiam? Eu sei, nós estávamos falidos. A empresa de papai quebrou completamente. Mamãe perdeu o emprego de lavadeira mês passado. Mas não era para ser assim. Eu poderia ajudar. Poderia arrumar um trabalho. Lembro-me de Mary ter comentado na escola que conseguira arrumar um quase-trabalho na padaria do bairro como recepcionista de porta ou alguma coisa assim. Nós temos apenas 11 anos, eu sei, mas e daí? Isso não significa que não somos capazes de nada.

Com todos esses esforços e pensamentos acabo relaxando a mente e apago. Pela primeira vez desde que eu estou nesse lugar, eu tenho um sonho.

Eu estou dormindo. Era como se fosse o meu eu da realidade vivendo no corpo do eu do sonho. Estou deitada em uma cama. Na minha antiga cama. No meu quarto. Está escuro. Muito escuro. Viro a cabeça. Ah, como é bom me mover novamente. Ao menos em sonho posso fazê-lo. Olho o despertador velho ao lado da pequena mesinha. 02h40min da manhã. Ouço conversas. Papai e mamãe estão discutindo na sala. Sobre o que?

Forço meu corpo a se levantar. Sinto-me levantando só que muito mais leve. Fico em pé de costas para a cama. Quando me viro levo um choque imenso. Vejo meu corpo na cama. Os olhos fechados. A boca aberta. Os membros relaxados.

Não pode ser.

Minha alma acordou, mas meu corpo está adormecido. Levanto meus braços. Estão esquisitos. Meio translúcidos. Meio transparentes. Sou um fantasma? Isso não me preocupa muito nesse momento.

Caminho em direção à porta e tento abri-la. Não consigo. Minha mão atravessou a maçaneta. Penso em uma solução. Mas é claro, se é apenas minha alma que está desperta, eu posso atravessar as coisas.

Atravesso a porta e sigo em passos leves até a sala. Papai e mamãe estão no sofá. Um a frente do outro. Discutem algo que parece ser importante. Mamãe está chorando baixinho.

Papai: Rose, precisamos do dinheiro. Estamos falidos e com essa grana podemos nos ajeitar e viver com conforto.

Mamãe: Jackson, ela é a nossa filha.

Papai: não Roselyn, ela é a sua filha. Quando você iria falar a ela que o pai não sou eu? Quando você diria a ela que o Jorge morreu quando ela nasceu? Quando ia dizer a ela que eu não sou seu verdadeiro pai?

Quase caí para trás com isso. Queria acordar do sonho. Queria voltar à realidade. Ah, já nem sei o que é pior. Ficar aqui acordada e imóvel, "em coma" nesse pesadelo real ou ficar com as mentiras dos meus pais, aceitar que eles me venderam à um laboratoriozinho barato que modifica e faz experimentos terríveis e perigosos com seres humanos.

Eu queria morrer. Essa vida não foi feita para mim. Deus, por que não me levas agora? Quero ser livre! Sem mentiras, experimentos, riscos, falsidades. Quero que me leve embora. Por favor, Deus. Liberte-me dessa prisão.

Meu sonho acaba e eu acordo. Queria dizer que acordei do pesadelo todo. Mas não apenas de metade dele. Estou ainda em coma. Ou não. Não sei dizer se quando uma pessoa está em coma ela pode sentir como se estivesse acordada.

Sinto-me como se meu corpo aprisiona minha alma. Eu estou presa dentro de minha cabeça.

Estou presa dentro de mim mesma e não sei como sair.



A Strange LifeTempat cerita menjadi hidup. Temukan sekarang