04 - Conhecido pelo desconhecido (parte 1)

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Aquelas perguntas eram ótimas, porque me sentia tão perdido quanto Salua. Até onde eu sabia, meu nome era Crispim, dormia na parte de cima da beliche, detestava trovões, mas amava admirar os relâmpagos. Minha mãe queria que eu fosse médico; meu pai, advogado. Entretanto, não pretendia seguir nenhuma dessas carreiras.

Achava uma pena ter enlouquecido antes do meu aniversário de segunda década, pois, desde os quinze, havia feito uma lista das coisas que faria entre os vinte e os trinta anos.

Preenchido pela adrenalina da situação anterior, argumentei:

— Até o dia de ontem, eu me conhecia. Agora, não faço ideia de quem sou.

— Olha, desculpe pelo susto — disse Gaspar. — É que não dá para confiar tão rápido em alguém que se acabou de conhecer. Ainda mais um humano.

— É, acho que se eu fosse um de vocês, também não confiaria. Então... Para onde estão indo? — questionei de modo amigável.

Em silêncio, Salua apontou para o horizonte. Enquanto isso, Gaspar comentou:

— Para o Refúgio de Mislan.

— Espere aí — disse eu. — Foi esse nome que a fera falou.

Ouvindo isso, eles se encararam.

— Posso ir com vocês? Prometo ficar calado o caminho todo... por favor! Só até eu arrumar um jeito de voltar para casa.

— Até que poderia — respondeu Salua. — Mas não iria tão longe, porque só entra no Refúgio quem ultrapassa a Árvore da Virtude. E só os Dartions são capazes de fazer isso. Então, meu caro humano, esquisito e listrado, você só chegaria ao outro lado se tivesse permissão do rei. Ou seja... não vai entrar.

Mesmo informado, insisti para que eles me levassem. Gaspar se mostrou favorável a mim. Quanto a Salua, não se conformava em me ver por perto. Ela segurou o braço do companheiro, arrastou-o para a frente e cochichou-lhe algo ao pé do ouvido.

Por volta de três minutos, assim que os sussurros acabaram, Gaspar me olhou como se estivesse com pena. Então, de modo repentino, os dois se viraram de uma vez só e começaram a caminhar de novo.

Sentindo-me rejeitado, descartei a possibilidade de segui-los, caso me deixassem para trás. Então, antes que eu optasse por outro caminho, Gaspar parou de andar, olhou para mim e, movimentando uma das mãos, gesticulou para que eu pudesse acompanhá-los.

Assim que me aproximei deles, Salua falou:

— Tudo bem, pode ir com a gente, só não pense que eu vou pegar leve com você. Pode ser que tenha se arriscado para salvar a minha vida, mas não tenho a obrigação de fazer o mesmo pela sua.

Dito isso, seguimos em frente.

Rodeados pelas sequoias avermelhadas, eles ficaram conversando durante um bom tempo. Quanto a mim, cumpri minha promessa de ficar calado. O fato de ambos serem Elfos, Dartions, ou sei lá como preferiam ser chamados, me surpreendia, mas já não me assustava.

Caminhamos por horas, mas durante o pôr do sol, nenhuma palavra foi dita. Parecia que os grilos e os pássaros estavam numa disputa musical; abafavam os sons dos outros animais.

Incomodada com aquela competição barulhenta, Salua parou de caminhar, virou-se lentamente para Gaspar e disse:

— Parem...! Gaspar, escute! — olhando para cima, girou com os olhos, mostrando-se admirada. — Os pássaros noturnos... Eles estão cantando, voltaram a cantar!

As palavras de Salua não faziam o menor sentido para mim. Enquanto estava surpresa com o canto dos pássaros, éramos impedidos de prosseguir, já que ela tomou a nossa frente.

— Legal. Mas... o que tem de mais nisso? — questionei.

— Sinal de mudança — comentou Gaspar, surpreso —, de grandes mudanças. Um confronto se aproxima.

— Confronto. É isso! Foi o que Iris falou.

— Espere! Iris? Você a conhece? — perguntaram ao mesmo tempo.

— É. Conheço... ou conheci.

— Então é você! — Salua ficou paralisada. — É realmente você! — elevando a voz, apontou-me o dedo trêmulo. — Por Alssami... Como eu não percebi antes?

Por causa da agitação, Gaspar tentou controlar os ânimos de Salua. De modo delicado, pôs a mão sobre a boca dela e olhou para os lados.

— Não fale em voz alta — sussurrou ele. — Precisamos sair daqui. Lembre-se, a fera poupou a vida do garoto. Não fomos os primeiros a descobrir.

Era evidente que estavam controlando a euforia. Eu bem que tentei arrancar informações sobre o tal segredo que girava em torno de mim, mas me pediram paciência. Com isso, aceleramos os passos na mesma direção em que transitava um enxame de vagalumes azuis.

Quando achei que nunca chegaríamos ao local que dava acesso ao tal Refúgio, eis que uma luminosidade me chamou a atenção.

— Mas que luz forte é aquela? — perguntei.

— Tenha paciência! Logo, logo vai descobrir — respondeu Gaspar.

Quanto mais andávamos, mais aquela luz se dissipava. A coloração lilás preenchia até mesmo os pequeninos detalhes das folhagens.

Chegando mais perto, notei que toda aquela intensidade era emitida por uma árvore isolada e de grande porte, sua altura deveria estar em torno de trinta a quarenta metros. Ela era a árvore mais estranha. Porém, a mais bela que já vi. Suas raízes aéreas me lembravam as patas de uma aranha caranguejeira. Além disso, elas se remexiam quando nossos pés as tocavam.

Olhando por baixo, percebi que a Árvore da Virtude não possuía folhas. Em vez disso, existia uma grande quantidade de energia que se concentrava na parte superior, transitando por suas ramificações.

— E agora que já estamos aqui. Qual é o próximo passo? — demonstrei interesse.

Daquela vez, ninguém me respondeu diretamente, mas fizeram algo que me fez calar:

Leusequetero Fruentrar — ela disse.

Leusequetero Fruentrar — ele acompanhou.

Reluscer - O SucessorOnde histórias criam vida. Descubra agora