24 - Mergulhando no passado (parte 1)

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A forma como Natanael olhou para os lados deixou-me apreensivo.

— Eu a vi! — disse ele.

— Quem?

— A sereia que ajuda Farmug. Ela fugiu pela floresta.

— De manhã?

— Não! Antes de reencontrar Fred.

Diante da informação, fiquei imóvel por alguns instantes.

Então Iris esteve lá o tempo todo, pensei.

— Certo, mas qual a relação disso com o seu sumiço?

Após minha pergunta, Natanael explicou que foi procurá-la de novo, mas Fred descobriu e quase o impediu. De qualquer forma, nenhum vestígio foi encontrado.

Por conta da culpa, ele praguejou a si mesmo.

— Veja bem! — apontou para a frente. — Primeiro Gaspar, agora Vougan... Daqui a pouco, não terei dedos suficientes para medir minha covardia.

— Pare com isso! — abaixei a mão dele. — Não pode se punir desta forma. Preste atenção! Eu fiz o mesmo quando deixei Gaspar e Fred para trás.

— Pelo menos eles estão por perto. Já Vougan...

— Sabe o que eu acho? Você precisa descansar.

Natanael cruzou os braços e respirou fundo por três vezes.

— Talvez esteja certo — bocejou. — Não consigo organizar os meus pensamentos.

Dito isso, ele adentrou a caverna.

Outra vez, me vi sozinho. Talvez não tão sozinho assim, pois Destegan veio até mim. Ele deu alguns rugidos. Mas, como eu desconhecia o significado, achei que estivesse com fome. Então tive uma ideia perigosa.

— Ei, Destegan, pode ir. Alimente-se, mas não demore.

Era início de noite. Destegan passou por mim, parou e, antes de seguir, virou-se como se dissesse "tudo bem."

— Veja lá o que vai fazer! Não nos meta em encrencas!

Destegan sumiu pela floresta. E enquanto se distanciava, percebi que eu mal conseguia ficar em pé. Logo entrei na caverna. Chegando lá, notei a formação de círculos — alguns maiores, outros menores. De repente, fui chamado para pertencer a dois deles, pois Fred e Slian encontravam-se em locais distintos.

Aquilo foi estranho, já que, antes, costumava ser ignorado e até optar pelo isolamento.

O fato é que me atrapalhei todo, não sabia para onde ir. Conhecia Fred há mais tempo. Porém, como ainda estava conhecendo Slian, não queria causar má impressão. Enfim, o chamado de Rafiq me salvou do constrangimento. Na altura dos acontecimentos, tinha até esquecido que ele queria falar comigo.

Para não os deixar esperando, antes de sair, apontei para Rafiq. Assim, entenderiam o meu recado.

— Aqui estou — disse eu.

— Sente-se.

Preferi não demonstrar ansiedade.

— Sei que tenho pendências, e não acho que cumprirei tudo o que pretendo. Ainda não tivemos uma conversa de pai para filho. Então, esse é o momento.

— Antes de qualquer coisa, o senhor não me deve nada.

Entendia Rafiq. Contudo, não me sentia no direito de cobrá-lo.

— Sei que devo, mas enfim... Quero saber o que aconteceu durante os anos da minha ausência.

Se eu resumisse a minha vida, iria passar anos falando. Por esse motivo, tentei ser breve. Comentei apenas o que era relevante.

— Como já falei sobre Mislan e Iris, vou pular essa parte — estiquei as pernas. — Bem... No mundo humano, fui adotado por uma família humilde. Eles não eram ricos, mas repassaram grandes valores...

Naquele momento, alguém chegou por ali. E isso tirou a atenção dele. No entanto, o rei informou que não queria ser interrompido.

— Continue — disse ele.

— Apesar de todas as coisas boas, eu me sentia diferente. Durante as reuniões de família, o assunto sempre morria quando chegava na parte em que Deise esteve grávida de mim. O tempo foi passando, fui crescendo e percebendo o quanto meu irmão mudou comigo. Ele se tornou grosseiro, me desafiava, não tinha paciência. Era o oposto de Agnes. Agnes sempre foi uma criança inteligente. Ela criava histórias e quando lia, reunia a todos. Sabe do que ela me chamava? "Irmão mágico".

Ainda sobre o passado, revelei tudo o que aconteceu após o chamado de Iris. Em momento algum, Rafiq demonstrou desinteresse. Pelo contrário, ele até me questionou.

— E seu pai adotivo? Nem sequer citou o nome dele.

Era estranho falar do meu pai para o meu outro pai. Não sei, sentia vergonha. Não vergonha em relação a Miguel, mas timidez em citá-lo a Rafiq. Para mim, era uma situação embaraçosa.

— O nome dele é Miguel. Bom... ele perdeu o emprego e começou a beber. Às vezes, chegava em casa arrastado, mas sempre foi paciente. Não tenho do que reclamar. Eu provavelmente não estaria aqui se ele não tivesse me acolhido.

Enquanto comentava, pequenos flashes regressavam. Por um instante, vi Miguel chegar em casa. Ouvi também a voz de Deise, que sempre implorava para que ele não fizesse tanto barulho, pois iria nos acordar. Mal sabia ela que, quase todas as noites, eu estava acordado naquele horário. E sempre que isso acontecia, eu escrevia ou desenhava, pois só pregava o olho quando amanhecia. Miguel nunca foi violento, o problema dele era que, quando exagerava na bebida, costumava falar alto demais e se transformava num cantor que só conhecia metade do refrão de suas músicas.

As piores noites de insônia foram aquelas em que precisei levantar cedo, pois, de vez em quando, a lojinha de artesanato ficava sob os meus cuidados.

De repente, percebi a tranquilidade nas expressões de Rafiq. Não fazia ideia das expectativas dele. Mas deduzi que estava satisfeito. Talvez eu tivesse mil e um motivos para guardar rancor. Entretanto, sou grato, ainda que tenha crescido em outro ambiente.

— Espero que um dia eu possa recompensá-los pelo que fizeram — disse ele.

— É, eu ficaria feliz se isso acontecesse.

Após me ouvir, o rei se disponibilizou a responder minhas dúvidas. Eu tinha diversas perguntas, mas um bloqueio me impediu de organizá-las.

— Fale sobre ela... Como se conheceram? — referi-me a Olga.

Passando a mão sobre a testa, ele suspirou.

Reluscer - O SucessorOnde histórias criam vida. Descubra agora