Acreditei que eu estava frente a frente com quatro cavalos híbridos, resultados de cruzamento com zebras. Sabia que eles existiam no mundo humano, só não recordava como os denominavam. Contudo, tinha certeza de uma coisa: o termo utilizado não era o mesmo mencionado por Salua.
— Escolham um para montar e vamos adiante — orientou Fred. — Arrumei essas belezinhas com alguém que me devia favores.
Ao aproximar-me de um dos jarcotes, toquei-o na altura do pescoço, onde ficavam as últimas listras localizadas naquela região. A partir dali, seu corpo era branco até a metade das costas, onde as listras recomeçavam, com uma coloração mais clara.
Depois de algumas observações, tive certeza de que estava diante da mais pura realidade. Por outro lado, pensava no quanto Miguel se interessaria em vê-los de perto.
Por maior similaridade que aqueles bichos tivessem com os híbridos que os livros mostravam, talvez não fossem tão iguais quanto eu imaginava. Um dos motivos que me levou a acreditar nisso foi porque Fred comentou que os jarcotes eram tão comuns quanto os cavalos. Sabendo disso, descartei a possibilidade de serem idênticos aos que eu conhecia por fotos e vídeos. Até onde eu sabia, os do mundo humano eram incapazes de se reproduzir. Então não tinha como estarmos falando dos mesmos seres.
— Como vou montar? Cadê as selas? — questionei.
Antes que alguém respondesse, dediquei-me a escolher um daqueles animais. Mas antes de confirmar minha escolha, um deles olhou fixamente para mim. Com isso, vi nossa semelhança em relação à coloração dos olhos.
De repente, o animal abaixou a cabeça, colocando uma das patas para a frente, como uma reverência.
— Vamos ter que te ensinar a subir? — provocou Salua.
Ainda que tentasse tirar sarro da ocasião, de uma coisa ela não sabia. Eu costumava andar a cavalos, principalmente quando ia passar as férias na antiga fazenda do meu avô — pai de Miguel. Por horas, observava o comportamento dos bichos que ele criava. Pena que, por causa de jogos de azar, tudo aquilo acabou. Ele vendeu a propriedade, desfazendo-se dos animais.
Naquela época, demorei a superar, não pela boa condição financeira que ele possuía — até porque minha realidade era outra —, mas pelo apego que eu tinha com o ambiente, principalmente com um cavalo que batizei de relâmpago.
Relâmpago tinha a coloração preta, era astuto e dócil. Contudo, Ulisses o odiava por ele sempre se recusar a carregá-lo, o que era estranho, pois aquilo nunca acontecia com outras pessoas.
Mesmo ninguém me respondendo sobre as selas, montei no animal e mostrei que mesmo com os meus desastres, conseguia estabelecer um repentino equilíbrio, ainda que não durasse.
— Acho que já podemos ir — comentei.
Pensei que, naquele momento, por eu ter tomado a iniciativa sem qualquer orientação, alguém fosse me contrariar. No entanto, ninguém disse uma palavra até nos distanciarmos do portão principal. Pela primeira vez, tomei a frente de tudo. Queria ter certeza de que lembrava do caminho percorrido.
Os galopes dos jarcotes eram as únicas coisas que conseguia ouvir, isso até Jen se aproximar e puxar assunto.
— Não tente entendê-la, porque vai acabar se apaixonando ou enlouquecendo. Veja Fred como um exemplo disso — falou sobre Salua.
Jen mantinha o equilíbrio. Porém, demonstrava insegurança, o que me levava a pensar que nunca havia feito aquilo ou não tinha o hábito de exercer tal atividade com frequência.
— As chances disso acontecer são de zero para baixo — comentei.
— Dizem que nunca devemos dizer nunca. Mas, nesse caso, fico feliz por você pensar assim.
Demorei para entender o que ela estava tentando dizer. Mas no fundo, não sabia o que aquilo poderia significar. Será que Jen estava feliz por eu não demonstrar interesse algum por Salua? Ou será que ela estava interessada em mim? Uma pergunta gerava outra.
Tentei dizer algo, mas não consegui, novamente me vi bloqueado. Estive tão distante da realidade que nem percebi a pausa dos galopes.
Regressando ao presente, avistei a Árvore da Virtude. Daquela vez, já sabia que não precisaríamos dos frutos giratórios para sair, pois, no pátio do Refúgio, Gaspar havia explicado que era só me jogar contra a energia presente no tronco que eu logo chegaria ao outro lado. Então, segui a recomendação dele.
A parte ruim foi que, quando os outros atravessaram, ficaram me criticando por tomar a frente da situação. Por isso, uma pequena discussão começou quando Fred disse:
— Mais devagar, garoto! Deixa os experientes irem na frente. A floresta não é um bom local para amadores.
— Sério? — desdenhei. — Pois fique sabendo que já sobrevivi a ela.
— Pode até ser verdade. Mas, agora, se algo de mal te acontecer, estaremos encrencados — disse Salua.
— Vocês estão exagerando. Não precisa de tudo isso. Sei me defender sozinho.
Não queria ser tratado como o ser mais frágil do grupo. Em outras palavras, não queria interpretar o papel do pequeno pássaro indefeso. Eu queria a minha liberdade.
— Isso não se trata de uma escolha — continuou Fred. — Vamos cumprir o nosso dever. Logo terá sua chance de mostrar que sabe se virar sozinho.
— Já que um dia me tornarei rei, precisarei correr riscos.
Estressado, vinguei-me de Fred.
— Isso não serve para essa situação — ele tentava falar mais alto do que eu.
— Quer saber? Façam o que acharem melhor. Só espero que não me culpem quando tudo der errado.
— Agora chega! — gritou Jen. — Estamos perdendo tempo.
Na floresta, quando voltamos a seguir adiante, os três me escoltaram. Fred se colocou à minha frente, impedindo que eu liderasse o grupo. Salua, por sua vez, seguia atrás de mim, não permitindo que me atrasasse em relação a Fred, e Jen me vigiava pelo lado direito, parecendo estar preparada para a qualquer momento iniciar algum diálogo que me deixasse constrangido.
Observava aquilo sem dizer uma palavra e pensava seriamente em desapontá-los da melhor forma possível. Portanto, quando tive uma oportunidade, fiz com que o meu jarcote se virasse bruscamente para a esquerda. Então, naquele momento, ele correu para uma nova direção, quebrando assim o vínculo indesejado que me forçavam a estar de acordo.
— Volte já aqui! — ouvia o grito furioso de Fred e o relinche do animal que ele conduzia.
O risco de cair era grande, mas estava tão chateado que fiz o animal avançar com rapidez.
— Crispim! — Salua e Jen gritavam simultaneamente, e aquilo só aumentou a adrenalina em me desligar da dependência.
Talvez estivesse fazendo o que sempre quis — fugir de ser prioridade dos poucos que me cercavam. Eu já era grande, não precisava mais daquilo. Não precisava que me carregassem nos ombros quando já havia aprendido a andar.
Devido a alguns troncos caídos, em algum momento, o animal reduziu o ritmo. Eu não sabia para onde estava indo. Desconhecia aquele caminho, mas reconhecia a minha necessidade de independência.
De repente, quando chegamos numa área dominada por musgos, o jarcote parou, ergueu as patas frontais e relinchou. Não desabei porque joguei o corpo para a frente.
A situação era estranha, pois além de o animal ter ficado assustado, recusou-se a continuar por aquele caminho. Além disso, as listras pretas de seu pescoço, inesperadamente, ficaram azuis. Não um azul comum, brilhava como neon.
— Que ideia maluca foi essa? — ainda alterado, Fred aproximou-se.
— Alguma coisa está errada — disse Salua. — O azul do alerta apareceu — apontou para o meu jarcote.
— Vamos sair daqui! — alertou Jen, sem descer. — Não é um bom sinal.
Talvez elas estivessem certas, pois sentia o mesmo.
Apesar do momento de liberdade ter ido por água abaixo, por ora, concordei com os outros. Entretanto, aquela não seria a última vez em que me veriam agir como um idiota.
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Reluscer - O Sucessor
FantasyNo território Dartion, durante o início da guerra, o Rei Rafiq enviou seu filho recém-nascido para o mundo humano, esperando mantê-lo a salvo. Entretanto, depois de muitos anos longe de casa, o jovem Crispim se vê bombardeado por revelações surreais...