17 - Coração de barro (parte 2)

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— Mas o que aconteceu com cada um? — indaguei.

— É o que muitos se perguntam — continuou, sacudindo os ombros. — Ninguém sabe ao certo. Mas, sei lá! Às vezes acho que parte da história é mito.

— Ah, é mesmo? — disse Gaspar, arrancando a luva. — Então dê uma olhada nisso.

Através do gesto, notei que a petrificação já havia atingido dois dedos de Gaspar. No entanto, preferi não tocar no assunto. Assim que olhei para Natanael, observei-o mudar de cor. Ele ficou tão pálido que parecia não ter sangue.

— Ele conseguiu! Conseguiu! — Natanael voltou a surtar. — Estamos mortos! É o fim!

— Acalme-se! — Fred o segurou, tentando controlá-lo.

— Farmug... Ele avisou que transformaria todos os Dartions em estátuas. Disse que não iria sobrar ninguém para contar história. Agora sei do que estava falando, agora eu sei — continuou Natanael, ainda nervoso.

— É, eu poderia ter elaborado um plano melhor — lamentou Fred.

Queria entender a parte do "plano melhor", pois eu estava ali sem saber de muita coisa. Fred articulou tudo em segredo. E isso poderia nos colocar em risco.

— Ouviram isso? — disse Gaspar, repentinamente. — Chegou a hora. Acho que esse é o momento certo para agir.

Naquele instante, o único barulho que ouvi foi um grito irritante de: Já amanheceu! Já amanheceu!

— De onde vem esse som? — perguntei.

— É o carimorco — disse Fred. — Se ele já acordou, logo vai amanhecer.

De repente, um animal estranho passou correndo pelo meio de nós. Ele tinha a cabeça azulada, suas orelhas eram tão grandes que se arrastavam pelo chão. Movia-se como um suricato.

Quando pesquisei a fundo sobre o carimorco, descobri que é um animal capazde falar. Porém, só consegue pronunciar três frases: já amanheceu; é meio-dia;é tarde. O carimorco desperta quando o sol nasce e adormece quando o astro rei se vai. Dizem que é impossível vê-lo durante a noite. Mas em relação ao dia, é comum topar com ele, pois passa a maior parte do tempo comendo frutas e espalhando sementes por todos os cantos.

Enquanto eu tentava me situar, Gaspar levantou-se com a ajuda de Fred.

— Antes de seguirmos adiante — disse Fred —, precisamos combinar uma coisa.

— O que seria? — questionou Natanael, de imediato.

— Aconteça o que acontecer, assim que libertarem os prisioneiros, fujam. Não esperem por ninguém. Entendido?

Após Natanael e Gaspar assentirem, Fred virou-se para mim:

— Crispim, você entendeu?

Por um momento, permaneci quieto e, antes de respondê-lo, olhei discretamente para o chão.

— Tudo bem — cruzei os dedos.

Voltamos a subir nos jarcotes. Enquanto isso, ainda distante, o carimorco continuou a gritar.

Após alguns galopes, chegamos ao castelo. Daquela vez, estávamos na lateral do esconderijo onde Farmug elaborava seus planos perversos.

— O que faremos agora? — perguntou Gaspar, tão perdido quanto eu.

— Acalmem-se! Preciso que confiem em mim — instruiu Fred —, fiquem aqui até eu voltar. Certo?

Antes da invasão, nossa última parada foi num local camuflado por alguns arbustos e plantas que, assim como nós, pareciam respirar. Ali tínhamos uma visão privilegiada da entrada do castelo. Em decorrência disso, logo vi três estranhos próximos à ponte de entrada.

Quando achei que já tinha visto de tudo, Fred se afastou, começando a bater palmas. De início, estranhei. Mas logo notei que poderia ser um código. Ele batia palmas, pausava e assobiava.

Através daquele gesto, Fred conseguiu o que queria; ser percebido. No entanto, por dar nossas coordenadas aos inimigos, desconfiei que ele tivesse enlouquecido.

Em relação aos soldados que vigiavam a entrada do castelo, chamei-os temporariamente de coisas que não gosto: sorvete, cigarro e abóbora. O Sorvete era o da direita, o Cigarro estava no meio; e o Abóbora um pouco mais à frente. O Abóbora era o único que estava com o capacete em mãos.

Ao ouvirem o barulho emitido por Fred, os soldados se aproximaram dele. Mas, por impulso, quase saí do lugar para ajudá-lo, pois achei que ele precisaria de reforço. Entretanto, Fred sinalizou para eu permanecer onde estava. Observando o que acontecia adiante, surpreendi-me quando o Sorvete ergueu a espada e a enfiou nas costas do Cigarro. Não sabia o que estava acontecendo, porém não restavam dúvidas, era impossível alguém sobreviver a um golpe daqueles.

A ocorrência deixou o Abóbora confuso, mas isso não foi tudo. Nos segundos seguintes, uma luta com direito a rasteiras e socos teve início. Ambos tinham espadas, mas nenhum fazia uso delas. Por fim, quando achei que aquilo jamais terminaria, o Sorvete saiu vitorioso, deixando o outro completamente apagado.

De repente, Fred saiu do lugar. E, com cuidado, seguiu em direção ao Sorvete.

— Mas o que diabos ele está fazendo? — perguntei.

— Fred é esperto — disse Natanael —, deve ter pensado nisso bem antes de saber sobre o sequestro.

Após um longo tempo de silêncio, Gaspar voltou a falar:

— Sei o que está acontecendo — afastou as folhas que atrapalhavam sua visão. — Só preciso que aquele soldado retire o capacete.

Não demorou para que aquilo acontecesse. Antes de puxar os corpos para as laterais, o Sorvete mostrou o rosto.

Depois de alguns instantes, ninguém jamais suspeitaria que naquele local havia acontecido algo. Ali, a única coisa que eu ainda ouvia era o grito do carimorco que, mesmo distante, continuava informando sobre o amanhecer.

— Cáluon! — foquei no rosto do soldado e apontei. — Aquele é o Cáluon!

— Não, Crispim. Aquele não é o Cáluon — informou Gaspar —, você está enganado.

Enquanto ele falava, uma de suas sobrancelhas transformou-se em barro.

Reluscer - O SucessorOnde histórias criam vida. Descubra agora