20 - Sobreviventes? (parte 1)

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— A culpa é minha... — aflito, grudei as mãos na nuca, afastando-me de todos.

Praguejei o vento, tentava entender o porquê de tantos desastres. Mas nenhuma resposta me foi dada. Não naquele momento.

— Acalme-se — disse o pai de Gaspar, aproximando-se. — Vou te levar para dentro da caverna.

Embora pudesse ouvi-lo, sentia-me atordoado por causa das vozes que rodeavam a minha mente. Ainda que eu estivesse mais forte e confiante, não conseguia ficar de pé. Na verdade, nem sabia mais o que fazia. Só queria me jogar no chão, enquanto aguardava uma solução despencar do céu.

Para sair do lugar, tive de ser arrastado. Os sentimentos e as informações incompletas me destruíam por dentro. Por ter sido levado, não presenciei o que aconteceu durante as primeiras horas, após a chegada dos refugiados. Eu tinha medo de olhar para fora e descobrir que os rostos conhecidos não estavam lá.

Ao sentar no chão, na parte interna da caverna, tentei fechar os olhos e pensar em algo bom, pois Deise sempre disse que se me concentrasse em coisas boas, eu as atrairia. Então, não me restavam tantas opções.

Enquanto insistia em fechá-los, peguei uma pedrinha do lado e joguei para a frente, rumo ao lago. Apesar de não ver onde ela caiu, ouvi o impacto. E, de certa forma, eu era como aquela pedra. Eu também havia sido atirado contra a água. Porém, não tinha certeza se, ao chegar ao fundo, encontraria respostas.

Demorou, mas visualizei coisas boas. Os Dartions sorrindo, a paz reinando e um gigantesco cata-vento ao longe. O cata-vento sempre surgia de modo involuntário nos meus pensamentos.

— Crispim! — disse alguém, de repente.

Salua, deduzi.

Abri os olhos e, ao avistá-la, notei que seu rosto estava suado e mais vermelho que o comum. Outra coisa que me chamou a atenção foi que uma das mangas de sua roupa estava rasgada.

Não tive coragem para perguntar sobre o Refúgio. Contudo, só de pensar no que Salua e os outros teriam passado, sentia o corpo arder e os nervos congelarem.

— Jen e os outros estão bem? — perguntei, com medo da resposta.

Antes de responder, ela passou o dedão na altura da minha têmpora esquerda.

— Sim, ela está. Mas... eles levaram Mislan.

Naquele momento, engoli em seco.

— E Zambzug?

— Ninguém o vê desde o fim do ritual — disse ela, desconfiada.

Talvez ainda fosse cedo para concluir minhas suspeitas. Porém, todas as evidências apontavam para Zambzug como o principal suspeito de ser o infiltrado. Primeiro, por causa do uso da máscara. Segundo, pelo fato de ele ter autonomia para entrar e sair do Refúgio quando quisesse.

— Preciso ver Jen — comentei, mudando de assunto. — Deve estar sendo difícil para ela.

— E como está... — retrucou Salua, franzindo a testa. — Ela não parou de culpar você e Fred pelo o que aconteceu.

Salua sentou-se ao meu lado, cruzou os braços. Em seguida, esticou as pernas.

— Conversou com seu pai? — perguntei.

— Sim. E é por isso que estou aqui — pausou. E quando voltou a falar, mudou o tom de voz. — Não me enrole! Onde estão Gaspar e Fred?

Por mais que eu aguardasse a pergunta, senti-me despreparado para respondê-la. Por esse motivo, permaneci em silêncio.

— Não me ignore, Crispim, ou eu...

— Aquela poeira que atingiu Gaspar, não era uma poeira qualquer...

— Disso eu sei — interrompeu.

— Gaspar me contou sobre a história da poeira vermelha. Ele achava que era uma lenda. Mas aquela coisa infestou o corpo dele. Infelizmente, ele ficou para trás, porque não conseguia mais se mexer. Fred voltou para buscá-lo.

— Então eles ficaram presos? É só isso que tem a dizer? — levantou-se irritada.

Não poderia afirmar que tinham saído ou permanecido lá. Afinal, não sabia o que havia acontecido após nos afastarmos do castelo. Em vista disso, guardei as teorias comigo mesmo.

— Vou buscá-los — disse ela, dirigindo-se para a saída.

— Não! Você não pode ir. Não vale a pena se arriscar tanto. Vamos esperar mais um pouco. Se eles forem para o Refúgio, logo saberão o que aconteceu. É provável que venham para cá.

Com um olhar assustador, Salua parecia querer me matar por contrariá-la. Entretanto, quando achei que discordaria, fui surpreendido.

— Se eles não chegarem até o cair da noite, — aproximou-se de novo — eu vou procurá-los. Nem que eu vá sozinha!

Ao ouvi-la, assenti e abaixei a cabeça.

— Quero ir lá fora — comentei, falhando a voz. — Mas tenho medo do que possa ver.

— Se quer enganar a dor, ignore-a.

— Na teoria, tudo é mais fácil. Isso é cruel — ergui a cabeça e, com o apoio da mão de Salua, levantei-me.

Respirando fundo, tomei coragem e saí da caverna. Do lado de fora, deparei-me com diversos círculos, onde os Dartions enfraquecidos estavam deitados. Como na caverna não havia espaço para todos, ficou decidido que os mais jovens, os Curandeiros e debilitados teriam prioridade; os outros, se acomodariam ao relento.

Durante alguns instantes, tentei focar em um alguém qualquer. Porém, não consegui. Daquela vez, não foi por causa do meu estranho costume. Mas por não aguentar ver tanto sofrimento e desespero.

Mais tarde, vi Jen e Anne abraçadas. Jen estava aos prantos, e isso me quebrou por dentro. Anne demonstrava calma, mas eu tinha certeza que estava tão abalada quanto a filha.

Antes que eu fosse até elas, Salua me segurou, olhou nos meus olhos e disse:

— Elas precisam de tempo. Melhor esperar.

De certa forma, Salua tinha razão. No fundo, queria que meus argumentos tivessem o poder de mudar a realidade, mas não havia nada que eu pudesse fazer além de lamentar.

Enquanto os feridos eram levados para a caverna, continuei olhando para as duas. E quando Anne me encarou de volta, virei o rosto para a frente.

Naquela direção, um círculo de Dartions me chamou a atenção. E assim que alguém se abaixou, vi uma mão trêmula. Com isso, tive uma sensação pessimista. No começo, evitei me aproximar, mas não resisti. A cada passada, sentia as veias da garganta pulsarem de modo descontrolado. Na minha mente, o barulho dos meus pés contra a grama se convertiam em algo ensurdecedor.

Notando minha aproximação, eles abriram espaço.

Quando vi o rosto de quem estava caído, confirmei que a minha intuição estava mais aguçada do que nunca. Era aquela que havia falado comigo sobre os desenhos, aquela que, antes, segurava o bebê.

Reluscer - O SucessorOnde histórias criam vida. Descubra agora