31 - Duas vidas, uma escolha (parte 1)

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— Como estamos partindo, essa será a última vez que alguém terá acesso ao mundo humano por meio de nós. Através disso, concluí que é justo te oferecer a chance de retomar a sua antiga vida. Se assim desejar, é claro.

Naquele momento, Olga e Rafiq se aproximaram, mas permaneceram calados. Como um gesto de apoio, puseram as mãos nos meus ombros.

— Não importa o que escolha. Vamos sempre te amar — sussurrou ele.

Por diversas vezes, sacrifiquei decisões para não decepcionar aqueles que amo. Entretanto, era hora de tentar o novo, hora de agir por mim mesmo.

— Já podemos começar? — a sereia tinha pressa.

— Tudo bem! — respondi, confiante.

— Fique atento... — dito isso, entregou-me uma ampulheta. — Quando a terra cair por completo, ficará preso do lado em que estiver.

Antes do próximo passo, espiei dentro do objeto e percebi que, pela quantidade de terra, o prazo era pequeno. Mesmo assim, não quis perder tempo. Permiti que o processo começasse.

Em círculos, a sereia movimentou as mãos e fez surgir um grande espelho rodeado de energia dourada. Enquanto o objeto ganhava forma, ela pronunciou termos desconhecidos, parecidos com mantras.

De repente, fui iluminado pelo reflexo. Em vista disso, caminhei na direção da energia, evitando olhar para trás. Se alguém falou algo, fui incapaz de ouvir.

Ultrapassando o campo, cheguei à minha antiga casa. Estava na sala, e logo percebi que, com a exceção de alguns ajustes na escada e a criação de uma rampa, quase nada havia mudado. Passando pelo corredor, olhei pela janela. Com isso, avistei a tempestade que caía lá fora.

Subi pela rampa, e quando entrei no quarto, vi Ulisses deitado de forma escandalosa, com o fone de ouvido enrolado nos dedos. Esperei qualquer reação dele. Porém, ainda que não parecesse, Ulisses estava dormindo.

Antes de chamá-lo, aproximei-me da beliche e notei que a maioria dos meus pertences estava em ordem. Em cima da cômoda branca, entre as revistas em quadrinhos e os bonecos, encontrei a caixinha de música que havia ganhado aos quatro anos de idade, assim que mudamos de país. Lembrei que estava quebrada, mas, ao abri-la, ouvi aquela doce canção de Beethoven. Era nostálgica, porém, confortante. O palhacinho careca girava e me trazia boas lembranças.

Deixando a caixa de lado, engoli o orgulho e me aproximei de Ulisses.

Antes de qualquer coisa, retirei o fone dele, mas isso não causou efeito algum. Depois; arrisquei uns tapinhas de leve, o que também não adiantou. Quis tentar outra vez, mais forte, entretanto, ainda que merecesse, seria injusto.

Quando resolvi chamá-lo pelo nome, Ulisses finalmente acordou:

— Você de novo? — reclamou, sonolento. — Não cansa nunca...?

— Ulisses...

— Vou fazer como das outras vezes, é só te encarar que você dá o fora.

— Não! Eu não vou sumir, pelo menos por enquanto.

Talvez eu tenha perdido muito tempo em relação à descrença dele.

— Escute, tenho poucos minutos para me despedir. Quem quer que tenha visto antes, não era eu.

Recuando por duas vezes, Ulisses tentou tocar a minha mão.

— Como isso é possível? — coçou os olhos. — Eu... Eu só posso estar sonhando! Hoje fez cinco anos que você morreu.

Fiquei assustado com a informação, não por ele ter achado que morri, mas pela quantidade de tempo que se passou.

— Espere! Que dia é hoje?

— 23 de dezembro de 2010... Calma aí — olhou para o relógio da parede. — Já passou da meia-noite, então é 24.

Naquele instante, olhei bem para Ulisses e percebi sua aparência mais velha. Deixou a barba crescer, raspou as laterais do cabelo, penteando-o para trás.

— Sabe, palmito? Quer dizer... Crispim. Peguei pesado contigo durante muitos anos. Mas, no fundo, só não queria me sentir excluído. Admito... sempre quis ser como você! Ter um pouco dessa vibe louca... Sabe, né? Isso o que você faz, ou fazia, com as tintas. Essa coisa de ser sempre tranquilão, de não se importar...

Apesar dos hábitos persistentes, daquela vez, senti sinceridade em cada palavra dita por ele.

Era minha vez de falar. Talvez, em outro momento, eu fizesse uma pausa. Porém, naquele instante, isso seria impossível.

— É difícil comentar sobre isso. Éramos tão unidos, mas na adolescência, você mudou da água para o vinho. Corrija-me se eu estiver errado, acho que foi nesse período que descobriu a verdade sobre mim.

— Sim! Eu já tinha ido dormir, estava morto de sono, mas desci as escadas pra beber água. Da cozinha, eu ouvi a conversa dos nossos pais. Eu não entendi de primeira, a ficha caiu aos poucos.

— Todos os dias, eu ficava esperando a gente se acertar. Queria que as coisas tivessem sido diferentes... — antes que eu finalizasse a frase, ele me abraçou.

Diante das circunstâncias, retribui o gesto.

Depois de tantos anos, nós alcançamos um momento de paz.

Não quis ser chato, mas precisei interromper. Ao olhar para a ampulheta, percebi que parte da areia azul tinha descido.

— Escute, Ulisses! Não sei se sua culpa criou uma imagem minha. Mas, se for o caso, quero que isso pare. Amanhã terá certeza de que estive aqui.

— Espere... Só quero te dizer que mudei, estou tentando ser uma pessoa melhor — disse ele, motivado. — Ah! Antes que eu esqueça, estou namorando faz um tempo e pretendo me casar com ela.

Ulisses abriu a gaveta da cômoda e pegou uma foto. Mesmo com pressa, eu me aproximei, porém, ao ver a imagem, quase caí para trás.

— Não po-pode ser... Ulisses! Todas... Qualquer uma, menos ela. Está me ouvindo? É pelo bem desta família!

Iris era a noiva de Ulisses! Na foto, Ulisses estava na cadeira de rodas. Iris, por sua vez, esbanjava um sorriso cínico enquanto apoiava as mãos sobre os ombros dele.

Reluscer - O SucessorOnde histórias criam vida. Descubra agora