Capítulo 2~

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Miguel

               Chega uma hora na vida de um homem que ele se toca que não é mais bem–vindo na casa dos pais. Eu já tinha me tocado disso há muito tempo. Eu amo meus pais, sei que eles me amam, mas nosso amor simplesmente não está na mesma página. Essa falta de sincronização entre nós foi motivo de muitas brigas. Eu já estava cansado, e sabia que mais cedo ou mais tarde eles estariam também.

               – Miguel! São duas da tarde, meu filho! Isso não é mais hora de você estar na cama.

              Meu nome e as três frases foram ditas acompanhadas de incessantes batidas na porta do quarto. Não aquelas batidas suaves, mas as batidas de mão fechada que minha mãe dava quando já estava prestes a perder a paciência. Não a culpo, nossos ritmos sempre foram muito diferentes.

               – Mãe, quantas vezes eu preciso dizer que fiquei até quatro da manhã programando? – foi o que eu disse a ela, meia hora depois, quando apareci na cozinha.

               – Menino, você precisa parar com isso. Como vai conseguir acordar quando conseguir um emprego? Porque você vai conseguir, meu filho. Eu falei com a Neidinha e ela disse que a filha dela vai mostrar seu currículo lá no RH da empresa que ela trabalha. A Carmem também disse que pode deixar lá no banco, mas você precisa me dar outro currículo seu.

              – Mãe, eu tenho um emprego.

              – Ah, meu filho. – Ela segurou meu rosto e me olhou com aquele olhar de quem está falando com uma criança. – Eu sei que você gosta dessas coisas que você faz no computador. Mas um dia você vai me dar uma nora e precisará de dinheiro para sustentá–la, né? E os meus netos também. Você vai precisar crescer em algum momento.

                Foi assim que começou o diálogo, mas terminou comigo batendo a porta do quarto, realmente irritado. Eu não ganhava rios de dinheiro como meu primo Ricardo, que era um engenheiro de merda, nem como o filho da fulaninha, que era advogado dono do mundo. Trabalho por projetos, então às vezes to nadando no dinheiro. Outras vezes, porém, a grana simplesmente não entrava. É por isso que permaneci na casa dos meus pais por tanto tempo. Como eu sairia para viver sozinho, precisando pagar aluguel, luz, água, internet decente, Netflix, Spotify, comida, cartão de crédito, cerveja, meus domínios, servidores, programas...? Pois é. Não dá.

               Mal sabia eu que tudo mudaria por causa de uma única pessoa: vó Eunice.

               Para a maioria das pessoas, ela é a dona Eunice, aquela velhinha fofa de oitenta e três anos que vem visitar e traz bolo de fubá quentinho. Para mim, vó Eunice sempre foi a melhor pessoa de todas. No auge dos seus oitenta e três anos, vó Eunice conseguiu solucionar parte dos meus problemas com maestria. Quando eu acordei numa tarde qualquer, estranhando minha mãe não ter vindo me tirar do quarto e a encontrei com malas diversas na sala da minha casa, vó Eunice se consagrou como minha pessoa favorita, de verdade.

              – Oi, meu filho. Dormiu bem? – vó Eunice me trouxe para o seu peito, com seu cheirinho acolhedor de vovó, como fazia desde que eu me entendia por gente.

               – Oi, vó. Eu dormi, obrigado por perguntar. A gente estava esperando sua visita por aqui? – Sentei no sofá e puxei–a para sentar comigo, dentro dos meus braços.

               – Não, querido. – Ela colocou uma mão no meu rosto. – Mas você sabe que vovó não precisa marcar horário de visita.

              – Claro que não, vó. – sorri – Mí casa, su casa.

              Ela me deu aquele sorriso fofo de vó e apertou uma das minhas bochechas, com mais força do que muita gente nova por aí.

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