Capítulo 15 ou "Até que se prove o contrário"

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– Os presentes podem se sentar. – permitiu o juiz com um aceno da mão direita, endireitando sua beca e assumindo seu lugar na presidência da audiência que definiria meu futuro.

Meu estômago parecia estar preenchido por ácido. Eu sequer conseguira engolir uma xícara pequena de café antes de sair de casa para minha audiência de mérito definitiva, que dirá enfiar alguma coisa sólida goela abaixo. As palmas das minhas mãos suavam em bicas, e minha perna direita parecia estar sobre um terremoto.

Era isso. Chegara o dia da minha audiência de mérito: aquela em que um juiz decidiria se as provas contra mim eram suficientes para deduzir a minha autoria no incêndio. Se eu fosse condenada, provavelmente seria mandada a um reformatório até os dezoito anos de idade, onde eu seria reeducada para me reintegrar à sociedade em tempo, além de trabalhar e estudar com outros jovens condenados por crimes de periculosidade relevante para a sociedade.

Se fosse inocentada, terminaria de cumprir o meu trabalho na Fundação Haroldo Santini até o final desse ano, cursando, ao mesmo tempo, o terceiro ano do Ensino Médio. Eu poderia, então, ser livre para fazer o que eu quisesse da minha vida, e o que eu não quisesse também, inclusive dar o fora de Viveiro e nunca mais voltar.

Pode-se dizer que era somente o dia mais importante da minha vida. Então, eu tinha todo o direito de estar nervosa.

O juiz convocara a audiência após um longo recesso para proclamar a minha sentença, então, por óbvio, minha advogada estava lá. Ela sequer me olhava no rosto, o que me dava uma leve sensação de que tudo daria errado. Geralmente, a Doutora Mônica esbanjava confiança, do tipo que faz parecer que até o Fernandinho Beira-mar seria inocentado contanto que ela fosse a advogada do caso. Eu evitava pensar que alguma coisa dera errado mais cedo na audiência, como o depoimento de Válter Abreu, investigador privado que, mais uma vez, viera tentar convencer o juiz de que eu era uma incendiária perigosa, e que deveria ser banida do convívio social até aprender a minha lição.

Juntei as mãos no meu colo, com as palmas viradas para baixo para conter o suor. Após limpar a garanta algumas vezes (muito irritantemente, se me permite dizer), o juiz ajustou os óculos na ponta no nariz e ergueu um pedaço de papel na altura dos olhos, preparando-se para enunciar a minha sentença em alto e bom tom:

– Não há evidências da autoria de Valéria da Nóbrega Corrêa no crime de incêndio contra a Fundação Haroldo Santini no último Agosto. Sua conduta de fuga deve ser analisada por especialistas na psique humana, talvez, mas não caberá a esta Corte julgar suas razões. Fuga não é materialidade delitiva para crime de incêndio, aliás, para crime nenhum, e, portanto, não há elementos para ensejar uma condenação. O incêndio retornará à fase de investigações para auferir o verdadeiro culpado, estando Valéria Corrêa imune a qualquer suspeita, haja vista ter sido considerada inocente para o crime e todos seus efeitos, com exceção da conduta posterior de cortar os fios do alarme de incêndio, admitida em confissão pela própria acusada. Levo em conta, ainda, seu argumento de que sua conduta foi meramente em defesa própria, e diminuo a pena comunitária de serviços na Fundação Haroldo Santini. Em vez de cumpri-la até completar dezoito anos no próximo ano, determino que o faça apenas pelos próximos seis meses.

Tenho certeza de que eu estava boquiaberta e provavelmente com a maior das caras de idiota quando o juiz completou seu pronunciamento, e em seguida, proferiu o que viria a ser minha frase preferida de todo o mundo.

– Até que se prove o contrário, Valéria é inocente perante a Justiça brasileira, e a comunidade viveirense. É a minha decisão final. Valéria da Nóbrega Corrêa, você está livre.

Quem Brinca Com FogoWhere stories live. Discover now