Capítulo 23

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Shaira Tutu

Eu estou tentando, do fundo do meu coração. Conversei bastante com a minha irmã sobre meus meses de estadia aqui na Inglaterra e sobre como eu pensei no que faria quando a visse novamente. Eu não sinto ódio por ela. Acho que nunca senti isso. Eu fiquei magoada, claro, mas esse sentimento nunca chegou perto do que seria odiar a melhor parte de mim.
Zunduri poderia ter todos os defeitos do mundo, poderia ter me feito de gato e sapato durante toda a vida, mas eu nunca iria parar de amá-la. Qualquer pessoa pode considerar isso um defeito meu, mas sei que a minha melhor qualidade é essa: a capacidade de perdoar.

Hoje eu consegui colocar a cabeça no travesseiro e descansar sem sentir um peso na consciência. Finalmente, eu estou leve.

***

Acordei cedo com os gritos de Zunduri ao meu lado.
Abri os olhos com certa dificuldade até me acostumar com a claridade do cômodo.

— Você vai me levar para ver Eliot hoje, não vai? – Ela gritou em meus ouvidos.
— Quantas horas são? – Tentei limpar os olhos.
— Quase seis. – Ela bocejou. – O bebê não me deixou dormir essa noite, ele é notívago. – Ela riu.
— Zunduri, você me acordou antes das sete horas da manhã? Você não deve ser minha irmã. – Joguei uma almofada em seu rosto.
— Eu precisava que alguém visse o dia clareando comigo, ué.
— Legal. Vou me arrumar e depois de tomarmos café, a gente pode ir. – Tentei manter os olhos abertos, mas falhei miseravelmente.

***

Desci as escadas e me sentei ao lado do meu pai, que ficara o mais distante possível de minha avó. Observei os olhares tortos que ela lançava para ele a cada 5 segundos e me prometi não fazer nenhum comentário a respeito disso.

— Bom dia a todos. – Peguei uma torrada, passei geleia e coloquei chá em minha xícara.

Ninguém me respondeu. Levantei o olhar e senti a tensão naquela mesa. Terminei de comer, lavei as louças e me dirigi à porta, mas Zunduri me parou antes de chegar até ela.

— Você vai me levar até o seu trabalho para ver Eliot. – Ela ficou séria.
— Zunduri, lá é nosso ambiente de trabalho, você não pode ir lá.

Eu puxei ela pelo braço, mas ela não se moveu.

— Zunduri, por favor. – Eu respirei fundo.
— Eu não vou atrapalhar vocês, me leve.

***

Acabei cedendo à ideia dela e a levei. Minha irmã se manteve quieta e calada durante os minutos de caminhada, mas logo parou e encostou em uma parede. Ela transpirava e tremia, mas me garantiu que era normal porque já estava no fim da gravidez. Logo retomamos a caminhada e chegamos ao nosso destino.

Zunduri ficou sentada em uma das mesas externas do café e leu em voz alta.

— Coffees'. – Leu a placa que nomeava o estabelecimento e deu um riso anasalado. –  Quanta criatividade, Shaira.
— Fique quieta, Zunduri. Eu preciso trabalhar. Se quiser qualquer coisa, pode me chamar, mas, por favor, não me atrapalhe.

Entrei no local, limpei as mesas e notei que Joseph não havia chegado ainda, o que me deixou levemente incomodada, porque ele sempre é muitíssimo pontual. Alguns fregueses começaram a entrar e dois rapazes, até jovens, pode se dizer, me chamaram atenção.
Eram bem apessoados, mas um deles fez careta ao ver que a única mesa disponível era ao lado da mesa de minha irmã. Ele fez algum comentário zombeteiro com o amigo e eles riram. Ignorei.

Joseph chegou, entrou no café, colocou seu avental e então me olhou.

— Bom dia, Shaira.
— Bom dia, Joseph.

Ele pegou o bloco de notas e saiu para a parte externa, Zunduri pigarreou atrás dele e então Joseph se atentou.

Ele ficou alguns segundos tentando reconhecer aquele rosto, mas logo Zunduri se jogou nos braços dele. Os dois estavam animados, e, mesmo com toda a barra que Joseph estava segurando com a mãe, ele conseguia rir e aproveitar o bom lado da vida.

Fui até a mesa deles e dei uma de boa garçonete.

— Bom dia, o que os senhores desejam? – Coloquei as mãos sobre a mesa e sorri para o meu amigo. Cheguei mais perto do ouvido dele e sussurrei: – Hoje é por conta da casa, mas, segredo, hein.
— Hum... Traga o melhor brownie de chocolate de toda a Inglaterra, por gentileza. Essa mocinha precisa conhecer
—  Brownie... Eu gosto. – Zunduri sorriu.

Eu fui caminhando e ouvi um cochicho da mesa dos dois rapazes.

— Eu odeio essa raça. Sabe, Henry, acho que os escravos nunca deviam ter sido libertos. Essa... garçonete, eu não consigo gostar dela. Certamente, essa garota deve estar roubando o gerente idiota dela. Aqui não é terra pra gente como ela e essa outra da mesa de trás. – O outro rapaz concordou com a cabeça e bebeu um gole do chá.

Respirei fundo e voltei à mesa deles,  mas antes que eu chegasse até lá, senti uma mão no meu braço.

— A sala do gerente é para lá, Shaira. – Joseph me disse e eu concordei.

***

Foi formado um pequeno amontoado de gente ao redor da mesa dos dois rapazes. Parker dava um sermão pior que uma outra cliente havia ganhado por parte dele, e o homem racista que tinha feito o infeliz comentário.
Seu rosto já estava vermelho e ele parecia sem graça, mas só parecia.

Gente como ele não se arrependa fácil de cometer esses preconceitos. É difícil erradicar uma cultura imposta há muitos anos. Eu não sou a primeira e nem serei a última a sofrer o racismo.

— E se não se sentirem confortável por eu ter Shaira como garçonete, fiquem a vontade para saírem daqui. Muito obrigado pela atenção dos senhores. – Parker se virou, mas voltou a falar. – A propósito, eu não preciso do dinheiro preconceituoso de vocês. Tenham um bom dia.

Todos no local ficaram encarando a mesa deles, que logo saíram em direção à rua sem olhar para trás.
Tentei voltar ao trabalho normalmente até a hora do meu almoço, mas continuei um pouco atordoada. Eu não consigo me adaptar ao preconceito.

Além da Cor - CompletoOnde histórias criam vida. Descubra agora