Boa noite

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No fim do jantar juntamo-nos na sala para ver o resumo do desfile, e deixo-me prender pelas cores vivas que passam no ecrã. Observo as reações das pessoas que estavam a assistir à medida que as carruagens iam aparecendo, e como é habitual os primeiros distritos, sempre favoritos, são recebidos com mais entusiasmo. E é então que me vejo a chegar, com as minhas cordas e flores no cabelo, e não consigo evitar um sorriso. Na minha cara nota-se apenas o orgulho, um certa altivez, e nem uma ponta de medo (apesar de também o ter sentido), e quando estamos em frente ao presidente e a câmara foca em mim, é como se o meu olhar se incendiasse. 

- As pessoas gostaram de vocês. - afirma Poddy, o estilista do Gabriel, gorducho com tatuagens na cabeça rapada, e eu sei que ele tem razão. Apesar de não termos sido o distrito mais aplaudido, chamámos a atenção das pessoas e foi sem dúvida o melhor ano para o 10 de que me lembro. 

Observo as carruagens a voltar para o edifício na televisão e depois os comentadores tecem as conclusões finais, bastante positivas para nós. Letty levanta-se após o fecho da emissão e diz, para mim e para Gabriel, com um sorriso animado:

- Parabéns crianças, estiveram muito bem. - de alguma forma consigo não revirar os olhos e limito-me a manter o silêncio. - E a toda a equipa também, claro. - acrescenta ela, com um risinho agudo ao qual se juntam o de Kiale e Poddy. Tashi continua serena. - Amanhã vai ser uma grande dia, meninos. Vão descansar e deixem os adultos tratar dos assuntos sérios.

Mordo a língua para não responder, porque a minha vontade era dizer tudo o que penso. Assuntos sérios?! Daqui a uns dias vou para uma arena lutar pela vida e ela ainda me diz para deixar os adultos tratar dos "assuntos sérios"!? Levanto-me do sofá e saio da sala sem dirigir uma palavra a ninguém, sem me importar em parecer mal educada, afinal tenho o direito de me sentir ofendida com tanta porcaria que sai da boca destas pessoas. Gabriel vem também, mas ainda o ouço a desejar uma boa noite à nossa comitiva antes de correr até mim no corredor. Sem nunca abrandar, prossigo o caminho até ao meu quarto (prefiro o silêncio do meu Avox do que a diarreia verbal de Letty). 

Quando já estou a abrir a porta e a entrar, Gabriel decide falar:

- Estavas diferente hoje.

Apesar de me apetecer ignorá-lo, confesso que fiquei curiosa com o que ele disse, então pergunto:

- Como assim?

- Estavas bonita. - diz ele, com a cara cada vez mais vermelha, e eu nem sei o que dizer, essa era a última coisa que precisava de ouvir vinda dele. - Quero dizer, estás sempre bonita, mas hoje... Sei lá... Era especial.

- É esse o objetivo. Para arranjar patrocionadores. - digo eu, super incomodada com a conversa, e só me apetece enfiar-me dentro do quarto e não sair mais.

- Pois, suponho que sim. - por momentos achei que tinha terminado por ali, mas não. - Acho que resultou.

Não estou a gostar da conversa nem percebo onde Gabriel quer chegar, então despacho-o:

- Ok. Bem, vou para dentro.

- Dorme bem. - diz ele enquanto entro. 

Fecho a porta rapidamente sem lhe dar uma resposta e fico encostada a ela enquanto tento perceber o que raio se acabou de passar, e é então que olho para o lado e apanho o maior susto da minha vida ao ver os olhos verdes a olhar para mim. Ele dá um passo em frente quando vê que me assustou, e parece preocupado.

- Estou bem. - digo eu enquanto acalmo a respiração, para mostrar que não preciso de ajuda. 

Só depois me apercebo que tinha a porta aberta durante toda a conversa que se acabou de passar, e o rapaz de olhos verdes estava mesmo aqui. 

- Ouviste, não ouviste? 

Como resposta, ele acena com a cabeça em confirmação. Qualquer coisa no seu olhar pede desculpas, e eu sei que não podia ter evitado, mas saber que alguém testemunhou o momento constrangedor só me deixa mais irritada (juntando o facto de o silêncio absoluto por parte do rapaz continuar).

Fecho-me na casa de banho para tratar da minha higiene e não consigo para de remoer no facto de ir ter o homem mais bonito que já vi a observar-me enquanto durmo, o que não é nada esquisito, portanto. Não trouxe uma roupa para vestir depois do banho, então enfio outra vez a camisola, que como é comprida só deixa as pernas à mostra e tapa tudo o que é preciso tapar e saio da casa de banho assim mesmo (afinal ele também já me viu em roupa interior). 

Ignoro o estranho e vou direitinha à cama. Enfio-me debaixo dos lençóis, apago as luzes com o comando pousado na mesinha de cabeceira e deito-me na almofada. Tento fechar os olhos e adormecer, mas não consigo simplesmente ignorar que está alguém do outro lado do quarto. Decido que o Avox me pode tratar como quiser que eu vou continuar a ser correta para ele, então não resisto e digo baixinho no quarto escuro:

- Boa noite.

Se tive uma resposta, foi o completo silêncio, mas eu sei que ele ouviu, e isso é que me interessa. E então, de consciência tranquila e pouco a pouco, caio num sono vazio.

Hunger Games: a história por contarWhere stories live. Discover now