Sentido de Oportunidade

10 3 0
                                    

  Olho para as mãos tensas dele, pousadas na bancada, e aproximo devagarinho a minha. Tenho perfeita consciência dos olhos dele pousados em mim, a tentar decifrar as minhas intenções, e evito olhar para cima, mantendo-me focada na mão que está mais perto de mim. Nem eu sei o que quero, só sei que isto parece ser o mais certo a fazer. O meu Avox está muito quieto... Não, Avox não. Passei a detestar essa palavra. Ele é muito mais que isso. 

Quando as pontas dos meus dedos tocam nas costas da mão dele um arrepio percorre-me o corpo todo, uma sensação nova, uma sensação boa, que faz o coração bater mais rápido, e sinto-o descontrair. Muito lentamente vira a palma para cima, e eu percorro as linhas com calma, e pouco depois ele mexe a mão de maneira a tomar o controlo e eu deixo-o tocar-me no pulso, nos nós dos dedos... Não sei o que pensar, ele parece estar tão curioso em relação a mim como eu em relação a ele, e este contacto é tão natural, tão agradável. Olho para cima, para as feições perfeitas dele, que continua fixado nas nossas mãos, e deixo-me estar a apreciar a beleza do que vejo: a pele escura (mais do que a minha), lábios cheios, nariz largo, sobrancelhas marcantes e os olhos... aqueles olhos, que de perto ainda são mais bonitos. Depois reparo em algumas pequenas cicatrizes, invisíveis ao longe - uma mesmo acima da sobrancelha esquerda, duas ou três espalhadas pelo pescoço, outra perigosamente perto do olho direito e mais uma junto à linha do cabelo. O que é que lhe fizeram? Só posso imaginar as que terá espalhadas pelo corpo.

Sinto a minha mão a ser envolvida pelas mãos dele, muito maiores que as minhas, quando nos assustamos com um bater à porta inconfundível. Letty, e o seu terrível sentido de oportunidade. Numa questão de segundos ele solta a minha mão, pega numa toalha e passa-a no espelho, apagando os vestígios da nossa pequena conversa, concerteza proibida. Eu fico parada, sem reação, a vê-lo agir com rapidez. O momento foi interrompido e eu pareço ter entrado em transe enquanto ouço Letty a chamar por mim:

- Luna? Posso entrar? - pergunta ela. - Luna? 

E enquanto eu permaneço quieta como uma pedra, ainda com a mão sobre a bancada da casa de banho, ele quase corre até à porta. 

- Ok, vou entrar. - avisa Letty, mas antes que o consiga fazer o rapaz que há segundos estava mesmo ao meu lado abre a porta por ela. Foi visível a forma como a postura dele se transformou, voltando a pôr a "máscara". Foi o suficiente para me fazer voltar a mim.

A minha acompanhante entra quarto adentro passando por ele como se não existisse.

-  Olá Letty, estava só a acabar de me preparar. - digo eu, dirigindo-me a ela.

- Ah... Mas enfim! O Gabriel disse-me que estiveste muito bem nos treinos de hoje. - só de ouvir o nome dele sou assaltada por uma sensação desagradável e dou por mim a olhar de relance por cima do ombro de Letty para o rapaz dos olhos verdes, que escuta a conversa atentamente. - Não sabia que tinhas talento com facas.

- Nem eu. - respondo, tentando esconder as emoções.

- Bem, é um ponto a teu favor. - diz ela com um sorrisinho. - O jantar é daqui a meia hora. 

Enquanto troteia nos seus saltos altos para a porta do meu quarto, lembro-me de uma coisa.

- Letty?! - chamo, fazendo-a virar na minha direção. - Será que podias arranjar-me um caderno e uma caneta ou algo do género? Gostava de fazer uns desenhos. Relaxa-me.

Bem, não é uma mentira completa, eu realmente tenho jeito para desenhar, mas não é para isso que quero o caderno. Não posso é simplesmente dizer que quero usá-lo para comunicar com ele, o rapaz parado ao lado da porta, que olha para mim com um sorriso à espreita.

- Ah, claro que sim, já mando alguém trazer isso. - e sai.

Sento-me na cama a processar os últimos minutos, em que uma barreira enorme foi definitivamente derrubada entre mim e o ser lindo que ainda não se mexeu depois de Letty ir embora; os últimos minutos, em que tínhamos que ser interrompidos, e para além disso, soube que Gabriel andou a falar do treino de hoje. Não consigo perceber o joguinho dele, e isso está a deixar-me mais nervosa do que era capaz de admitir. 

Começo a ficar de tal modo irrequieta que se nota fisicamente, e claro que ele percebeu. Aproxima-se  de mim com muita calma, e vejo na cara dele a pergunta que não consegue fazer: o que é que se passa? Podia simplesmente abanar a cabeça, mas por algum motivo sinto que posso confiar nele, e preciso desesperadamente de falar com alguém. 

- É sobre o que ela disse, do rapaz do meu distrito... Não sei onde ele quer chegar, mas não estou a gostar nada. Há alguma coisa estranha nele...

O sobrolho franzido dele e olhar suspeito dizem tudo: o que é que ele fez? Não é uma coisa que eu lhe contasse em situações normais, mas não tenho ninguém aqui, os meus amigos estão a sabe-se lá quantos quilómetros de distância... Suspiro e depois falo com o olhar preso no chão:

- Eu acho que ele está a tentar qualquer coisa comigo, e eu sei que posso soar paranóica, mas simplesmente sinto-me desconfortável ao pé dele. 

O rapaz à minha frente acena com a cabeça. Ele percebeu.

- Então não achas que sou maluquinha? - brinco eu, tentando aliviar o ambiente, e mais uma vez a resposta é dada com a cabeça, um não sincero, junto de um sorriso mínimo.

E então batem à porta devagarinho, dando logo a certeza que não é Letty. Levanto-me de um salto e quase que corro até à porta para ir buscar o caderno e caneta, já com a primeira pergunta na ponta da língua. 

Quero saber qual é o nome.









Hunger Games: a história por contarWhere stories live. Discover now