Agora tudo faz sentido

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Tento relaxar debaixo da água quente, mas a presença dele na divisão ao lado parece impôr-se sobre mim. Esforço-me para deixar a mente vazia, mas os malditos olhos verdes insistem em não me deixar sossegada, e pergunto-me vezes sem conta sobre o silêncio constante. Por mais teorias que crie nenhuma delas parece fazer sentido. Tento acalmar os nervos, e de repente a água a escaldar torna-se insuportável na minha pele, então apresso-me a fechar o chuveiro e a embrulhar-me no robe. Seco os meus caracóis com uma toalha e visto-me rapidamente, com um certo entusiasmo de voltar para o quarto. Abro a porta com o coração a bater rápido e não consigo reprimir um sorriso quando vejo que ele não foi embora.

- Podes comer, se quiseres. - ofereço eu, apontando para a comida que sobrou. 

Ele olha fixamente para mim, talvez avaliando se estou a brincar, e depois faz que "não" com a cabeça, sem desviar os olhos. Algo na rigidez com que negou faz um nó no meu estômago, o sorriso desaparece e não me consigo controlar mais:

- Sabes, não custa assim tanto responder.  - digo eu, com a voz cheia de desdém. - Era bom conversar com alguém, não é como se estivesse aqui por vontade própria.

Sinto as lágrimas começar a formar-se e viro-me imediatamente, decidida a fechar-me na casa de banho o tempo que for preciso para não o deixar ver-me chorar, mas eu sei que ele percebeu. Eu vi a expressão dele a desmanchar-se no segundo antes de eu virar costas. Fecho a porta depois de entrar na casa de banho ainda vaporenta e húmida do meu banho já com lágrimas a escorrer pelas bochechas, e deixo-me deslizar pela parede até ficar sentada no chão com os braços de volta das pernas. 

Passam minutos e minutos até que ouço batidinhas suaves na porta, e por mais estranho que pareça, tudo o que consigo sentir é alívio por ele se preocupar, alívio por não ter de ficar aqui sozinha. Eu sabia que ele não é como o resto das pessoas de cá, e quando o rosto moreno espreita pela porta semi aberta sinto-me segura. A expressão do Avox já não é dura, parece que deixou cair uma máscara que o protegia e encara-me com uma nudez extraordinária, como se estivesse preparado para ser verdadeiro comigo. Uma última lágrima escorrega pelo meu rosto quando ele passa a porta e olha em redor frustrado, como se procurasse qualquer coisa, até que avança para junto do lavatório. Desliza o dedo pelo espelho embaciado e só percebo a intenção dele quando vejo o que escreveu: DESCULPA.

Preciso de um momento para absorver a palavra no espelho e pensar no que devo dizer a seguir.

- Porquê? Porque é que não falas? - digo baixinho, com a maior da suavidade. - Eles não te deixam?

O rapaz abana a cabeça e escreve: NÃO CONSIGO. Ele não disse que não podia, disse que não conseguia. A tristeza nos olhos dele diz-me que a explicação é muito mais profunda do que eu esperava, e sinto a garganta seca antes de fazer a próxima pergunta:

- Porquê?

Ele escreve a resposta devagar, e a palavrinha de apenas quatro letras faz o meu coração acelerar. AVOX. A palavra estranha, que não sei o que representa. Não sei o que vou descobrir, sei que não vou gostar, mas preciso de saber. Levanto-me devagarinho e aproximo-me dele, que me observa encostado à bancada.

- Não percebo. - afirmo quase num sussurro.

Ele franze as sobrancelhas e parece ponderar o que fazer a seguir. Quando os olhos verdes dele voltam a cruzar com os meus, castanhos muito escuros, quase pretos, eu sei que ele decidiu confiar em mim, e preparo-me para o que vou ver no espelho. Desta vez, a resposta é mais longa. E mais difícil de engolir. 

CORTARAM-ME A LÍNGUA - foi isso que ele escreveu. Agora tudo faz sentido, e eu sinto-me uma idiota. Ele foi mutilado, e agora trabalha para as pessoas que lhe fizeram isso. Não acredito nem por um segundo que a pessoa à minha frente seja ou tenha sido capaz de fazer alguma coisa tão má que mereça tal castigo, simplesmente não acredito. 

Ele olha para mim em busca de uma reação, talvez à espera que faça mais perguntas ou que me afaste. Talvez à espera que sinta repulsa... Mas isso não acontece. Não insisto no assunto, não choro, nem digo nada. Não há mais palavras a ser ditas, de repente o silêncio é preferível.

Hunger Games: a história por contarWhere stories live. Discover now