Capítulo 1

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O relógio no painel do carro parecia zombar de mim, apontando com cada piscar irritante o quanto eu estava atrasado. E no fundo eu não poderia culpar o maldito, já que sendo lógico, meu atraso era apenas culpa minha e das pilhas de papelada que eu tinha na minha mesa. Quando eu decidi prestar o concurso para delegado, não imaginei que a burocracia do cargo tivesse uma obsessão por documentos impressos, o que sempre me fazia esticar um pouco mais meu expediente.

E por isso eu estava aqui, atrasado e prestes a socar o painel do carro. Ao menos, a estrada estava deserta e não haveria testemunhas do meu surto de impaciência.

Não que eu estivesse envolvido em uma questão de vida ou morte, na verdade, eu tinha certeza de que a pessoa que me esperava entenderia. Mas, eu também não era um idiota a ponto de ignorar o quanto as minhas faltas e cancelamentos poderiam dizer mais do que as minhas desculpas. Nenhuma mulher aceitaria ser deixada de lado pela quarta vez seguida, mesmo que essa mulher fosse uma médica independente e dona de si como a Drica.

E levando em consideração como a nossa situação começou, ela poderia muito bem entender que eu estava desinteressado e só aceitei o seu convite por cansaço de inventar negativas educadas, afinal, a Drica é muito insistente quando quer algo. Mas, a verdade é que na sua transparência habitual, a médica mostrou que queria o mesmo que eu, apenas diversão. Ela concordava que nós tínhamos um compromisso com nossas carreiras e o que nos faltava era calor humano de alguém que não nutrisse expectativas, o que nos tornava peças perfeitas.

Na minha mente começaram a surgir diversas ideias que pudessem justificar um atraso de quase uma hora e meia, coisas plausíveis como um pneu furado na estrada deserta ou algum assassino com uma serra elétrica, algo que realmente me fizesse deixar uma mulher plantada no restaurante de um hotel de luxo, com um quarto reservado logo acima.

— Ou talvez eu nem precise mentir no final das contas. — sussurrei para o interior do carro, já acionado o pisca alerta do veículo.

Poucos metros à frente, na estrada, um carro parecia ter colidido com a mureta de proteção. Nada muito grave, provavelmente o motorista deveria ter dormido ao volante ou passado mal, no entanto, pelo horário e pouco movimento nessa via, quem saberia a quanto tempo o coitado estava ali.

As luzes do sedan luxuoso estavam acessas e o som constante da buzina sinalizava que o motorista deveria estar lá dentro, desacordado e indefeso, mas sob os meus instintos, eu rapidamente verifiquei a minha arma e iniciei uma chamada para um conhecido do departamento de policiamento rodoviário antes de sair da minha picape.

Com poucos passos eu pude notar o estrago no para-choque do veículo e pelo vidro um pouco danificado, notei uma cabeleira loira cobrindo o volante e rezei muito para que aquela pessoa não estivesse bêbada, pois eu não estava no clima para lidar com beberrões irresponsáveis. Ainda mais se tratando de uma dondoca que exagerou demais nas mimosas.

— Senhora?

Eu bati com os nós dos dedos no vidro da janela do motorista, aguardando alguma reação do corpo imóvel, e quando não obtive resposta, fui direto para a maçaneta, esperando que as portas o carro estivessem destravadas.

O som do ping ping que se iniciou com a abertura da porta, junto com o acionamento das luzes internas, fizeram com que a mulher afastasse um pouco o rosto do volante. Mas, ao invés de verificar a situação da motorista, meus olhos ficam presos no líquido vermelho e espesso que cobria o couro bege do volante. Eu não fazia ideia de onde aquele sangue vinha, mas perturbado, seria uma palavra fraca demais para descrever a minha reação.

— Sanches? Está aí cara? — o som que veio do telefone em minha mão me fez voltar os olhos para a tela brilhante do aparelho, e eu me desloquei alguns passos para longe do veículo.

— Hum, Fábio, oi... É... Eu estou precisando de uma ajuda, teve um pequeno acidente com um carro aqui na rodovia.

— E você está bem cara? — o homem perguntou com preocupação.

— Ah sim, não foi comigo o acidente, é mais um socorro. Vou te passar o local pelo GPS e você vai poder assumir... Mas, hum, você pode enviar uma ambulância também, por favor?

— Claro parceiro! Já estou acionando uma equipe. — o Fábio era um cara sempre pronto para estender uma mão amiga.

Depois de uma despedida rápida, eu voltei novamente para perto da porta aberta, disposto a agir como uma pessoa sensata diante da situação, então, muito cuidadosamente verifiquei se a mulher estava consciente.

— Senhora? Você está me ouvindo?

Um gemido fraco veio debaixo de todo o cabelo loiro que estava espalhado entre o painel e o volante do carro. Logo em seguida, num sobressalto, a mulher levantou por completo o rosto, em um estado agitado de medo.

— Não, por favor... — ela sussurrou completamente assustada.

— Você está segura, se acalme. — eu levantei as mãos em sinal de rendição, tentando tranquilizá-la e foi então que eu percebi as contusões.

A mulher tinha marcas vermelhas e arroxeadas por todo o rosto, um lábio levemente partido e um corte na sobrancelha. E pela forma em que ela passou a segurar a lateral do corpo, algumas costelas deveriam estar feridas também. Um conjunto de ferimentos que jamais teria sido causado pelo impacto insignificante desse acidente de carro, afinal o air-bag sequer havia sido acionado.

— Senhora, uma ambulância já está a caminho.

— Não! Ele vai descobri onde eu estou, por favor, não. Eu não posso ir para o hospital, eu tenho que ir embora.

As palavras dela estão meio enroladas e sendo ditas numa velocidade luz, mas seria impossível não entender o quão apavorada ela estava com a ideia de ser localizada por alguém. E não precisava ser muito esperto para ligar os pontos e descobrir que esse alguém era a mesma pessoa que a machucou.

— Senhora, você precisa de cuidados médicos. — tentei ser firme diante da tentativa dela de sair do carro, impedindo-a de se mexer muito no banco.

— Você não entende, eu não posso mais... — lágrimas começaram a saltar dos incríveis olhos azuis dela.

O som de sirenes chegando deixaram o rosto da pobre mulher ainda mais angustiado e isso fez crescer na minha barriga uma sensação de chumbo quente, eu quando dei por mim, eu estava fazendo algo completamente estúpido e impulsivo.

— Olha, eu vou te acompanhar e vou falar com a equipe médica. Seja lá quem for que fez isso, não vai chegar até você, porque eu não vou deixar.

Eu vi o lampejo de alívio e gratidão que invadiu o rosto da mulher, isso até ela finalmente começar a experimentar toda a dor que, obviamente, a adrenalina e o frenesi da fuga a impediram de sentir. E em instantes, ela fechou os olhos e caiu num estado de semiconsciência.

Logo depois, a equipe de paramédicos chegou, iniciando os procedimentos de socorro, ao lado da dupla de policiais rodoviários, que me abordou por informações. Mas, em nenhum momento eu consegui manter meus olhos longe da mulher.

Alguma coisa dentro de mim me instigava a ficar próximo daquela desconhecida, por isso não foi uma surpresa eu ter seguido a ambulância de perto até o hospital. Era uma sensação que ia além da compaixão e do desejo de fazer justiça em nome daqueles olhos azuis assustados, algo mais confuso e inquietante, que eu não conseguia explicar.

Mas, enquanto eu assistia seu corpo sendo levado pelos corredores do hospital, eu tive algum tipo de iluminação, pois finalmente soube a resposta para esse inquietante efeito que a mulher tinha sobre mim.

Esse sentimento todo era resumido em reconhecimento, porque aquela mulher ferida e desesperada era a minha noiva sem nome. Aquela que eu imaginei nunca mais encontrar depois do nosso encontro num jardim.

E essa revelação me fez ter a certeza de que estava prestes a meter os pés pelas mãos.

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Gente, obrigada por todo o carinho que vocês tem por mim e minhas histórias ;)                     De coração, sou muito grata por cada leitura e comentário!

Acordo do Destino #4 (DEGUSTAÇÃO)Where stories live. Discover now