XXXVI. Bonecos de Palha

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Asmin cuspiu no chão lamacento, encarando o boneco de palha que servia como seu inimigo letal. Dois dias. Dois malditos dias naquela maldita floresta, presa àquelas malditas bruxas, preguiçosas demais para lutar contra o inimigo de sua espécie. Malditas sejam aquelas que assinaram o tratado da Aliança, que magicamente a obrigava a obedecer às vontades da Matriarca. Malditas, malditas, malditas. Ela cuspiu novamente no boneco, livrando-se do excesso de saliva que se acumulava após a intensa atividade física.

Os músculos de seu braço ardiam após as centenas de socos deferidos contra o imbatível adversário. Esses bonecos, dissera-lhe Dust certa vez enquanto treinavam juntas, anos atrás, eram o pior de todos os inimigos. Eram os únicos que, não importava quantos socos e pontapés eram dados,eles sempre resistiam e se mantinham ali, fixos e inquebráveis.

- A não ser que se use uma espada. - Ela respondera, arrancando risos da companheira.

Pensar na bruxa falecida a fez ferver. Com o ódio acumulado no peito e o choro entalado na garganta há dias, Asmin pôs-se a socar novamente o alvo. Ao menos a dor nos punhos e nos músculos a faziam esquecer a dor no peito. Queria voltar àquelas planícies e encontrar mais orcs para aniquilar, queria viajar até o leste e atar fogo aos lares daqueles seres demoníacos. Queria, de alguma forma, vingar a morte daquela que ela tanto amou.

- O ódio não a trará de volta. - Dreika dissera no dia em que tinham chego na Gruta, após sua apresentação perante Ode Ferro-Brasil. - Vele sua memória, mas não se esqueça que aquelas coisas não são o verdadeiro inimigo.

Sim, ela sabia. Sabia também que a simples presença de orcs nas planícies ocidentais provavelmente significava algum tipo de plano maléfico dos elfos, que eles tinham sido os responsáveis pela presença daqueles seres ali, que eles eram os verdadeiros culpados pela morte de Dust. Sabia, ou esperava que assim fosse? A bruxa deu mais um soco no boneco, fazendo com que ele chacoalhasse violentamente. Não tinha certeza, provavelmente nunca teria.

- Só pode ser sua culpa. - Ela murmurou para o alvo, fingindo que ele era um guerreiro élfico enquanto enfiava-lhe socos e chutes inesgotáveis. - Só pode ser sua culpa! - Ela gritou, desta vez olhando para o alto, para a copa das árvores.

Asmin caiu de joelhos, esgotada, consumida pela própria tristeza e pelo desejo de vingança. Desejava, mais que tudo, sentir a pele quente de Dust entre suas mãos, o carinho dela por todo o seu corpo. Mas aquilo nunca mais aconteceria, e isso comprimia ainda mais o seu peito, fazia com que aquele volume em sua garganta que a pressionava, que tentava explodir em choro a qualquer momento.

Fora fria nos primeiros dias. Talvez até demais. Tentara fingir que aquilo não a tinha afetado, que a morte de Dust fora apenas a perda de uma companheira de batalha. E Dreika respeitara sua escolha. Não revelara a verdade para a Fura-Coração ou para os escravos libertados. Não a fizera parecer fraca num momento tão delicado, e Asmin seria eternamente grata por aquilo. Ser tratada como uma pobre viúva nunca estaria em sua lista de desejos.

Durante aqueles momentos, na caminhada implacável rumo à Floresta Negra, ela reprimira a dor em seu coração e agira como a guerreira que devia agira. Quando chegara ali, no entanto, quando se viu sozinha na floresta, todas aquelas emoções vieram à tona e a bruxa descarregou todo seu ódio e sua dor naquele pobre boneco de palha. Passara dois dias lutando e treinando, fingindo que queria estar pronta para a luta, quando na realidade desejava apenas descontar todas as suas frustrações naquele pedaço de mato inanimado.

Quando se preparava para atacar novamente, abrindo e fechando os punhos doloridos e esticando as articulações dos braços, Asmin ouviu passos atrás de si. Um olhar naquela direção a permitiu ver um macho feérico que se aproximava, encarando-a e analisando sua aparência, os olhos indo de sua cabeça aos pés e de volta à cabeça. Silencioso, o estranho a observou com belos olhos azuis e aquele rosto ferino característico de seu tipo enquanto a bruxa ajeitava o corpo, alongando um pouco os braços.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora